G I L
Aquela família, tal como a maioria das
famílias portuguesas, vivia num apartamento. Pai, mãe e três filhos num
espaçoso T4. Neste caso, não se podia falar em gaiola. A única gaiola que lá
existia era o habitáculo de um hamster.
A história começou assim...
Certo dia, o filho mais novo, naquela
idade em que o mundo real e o virtual se confundem, imaginou que uma família
sem bicho de estimação era uma família incompleta. Num ápice, convenceu a mãe a
meter em casa um bonitinho hamster.
Foi uma alegria quase geral quando o ratinho foi perfilhado. Quase... O pai,
esse, olhou-o uma vez e nada disse; sorriu um pouco, misteriosamente, e pensou
muito.
«Se fosse um pássaro, ao menos cantava
para pagar o que come. Agora um rato, sem qualquer utilidade, numa gaiola
instalado, a roer a rotina dos dias. Mas podia ter sido pior, sim senhor! Por
exemplo, se o garoto se tinha lembrado de querer uma vaca, de certeza que a
casa ia abaixo com tanta loucura.»
O pai, por solidariedade familiar, lá se
mostrou interessado e contente com a aquisição. Tinha lido, algures, talvez num
artigo escrito por um sociólogo ilustre, bem conhecido no País por ser um velho
solteirão, que elementos desta natureza são muito importantes para o
fortalecimento dos laços familiares. Ora, assim discorrendo, o pai concluiu que
o Governo devia oferecer um ratinho a cada família...
Finalmente, decidiu-se:
__ Então, filho, que nome vais dar ao rato?
__ Não é um rato, pai! É um hamster!
__ E que nome vais dar a essa coisa?
__ Ó pai, isto é um ratinho doméstico. Vai
chamar-se Gil.
«Perfeito!», pensou, «Tinha de ser nome
de pessoa. Só é pena não contar como parte integrante do agregado familiar para
efeitos do IRS.»
A mãe, com intuição feminina, apaziguou:
__ Não te preocupes. Estes ratinhos não vivem
mais de dois anos.
Ele respondeu, com um tom de voz
ambíguo, que era uma injustiça os seres mais inofensivos terem pouco tempo de
vida, quando comparados com outros ratos de longa data.
O pai habituou-se a ter o hamster a um canto da sala. E
habituou-se também a um ritual familiar. À noite (não pela calada da noite,
como é normal nos ratos), à hora da telenovela, lá saía o Gil do seu ninho.
Esticava as pernas na roda giratória, saciava a sede e, antes de se encher com
a sua ração, vinha colar-se às grades da gaiola para receber uns mimos de
comida. Mãe e filhos, muito carinhosamente, abasteciam-no de fragmentos de
bolacha. O pai assistia à cena e acabava por se perder em cogitações de índole
sociológica. Era assim todas as noites __ e contra reflexos condicionados nada há a
fazer.
Meses depois, um novo elemento veio
aconchegar mais o ambiente lá de casa. Era, quando entrou, um pouco maior do
que o Gil. Hoje, embora não seja um corpo de assustar, o cão está muito mais
crescido.
O Snobe, assim nomeado por decisão democrática
do filho, teve privilégios de fazer inveja a qualquer ratinho: visita de
médico, portador de Bilhete de Identidade, passeios nocturnos e um sofá por sua
conta nos serões familiares. Tinha, na verdade, tratamento VIP, e só a
humildade impedia o Gil de se queixar à Sociedade Protectora dos Animais.
Gil e Snobe cimentaram depressa uma
amizade tácita para o resto da vida. À noite, quando o hamster vinha pedinchar o seu doce, o cão abeirava-se da gaiola e,
durante segundos, contava-lhe as notícias do dia, ouvidas momentos antes no
telejornal, dando destaque especial ao desenrolar dos acontecimentos no Big
Brother. Mãe e filhos deleitavam-se com estes saborosos instantes caseiros. E o
pai assistia à cena, fingindo-se distraído por detrás do jornal.
Três anos se passaram. O pessoal
mostrava-se contente com a longevidade do rato, sempre jovial na sua rotina
diária.
A surpresa estava reservada para o pai
(a ironia do destino pode aparecer a qualquer momento).
Certa tarde, gozando a leitura de um
livro, no sofá, apercebeu-se de que o hamster
era quase uma estátua no lastro da gaiola. Apenas os olhitos se moviam aflitos.
Intrigado, abriu a gaiola e tocou no ratito. Este fez um esforço para se mover.
Lentamente, avançou uns centímetros numa espécie de dança sem nexo. Era visível
que fora vítima de uma trombose. Não tinha coordenação motora. Assim, o pobre
nem sequer conseguia chegar à comida. Ao seu ninho, no piso superior, nem
pensar. O homem percebeu que o fim do Gil chegara e, surpreendido consigo
próprio, sentiu um ratinho de tristeza.
Os dois dias seguintes foram de agonia
para o animal e de expectativa sofrida para a família. O Gil fazia lembrar uma
pessoa. O que ele estava a passar era em tudo igual aos humanos. A doença era a
mesma; o arrastamento era o mesmo; a aflição era a mesma. Todos estavam
tristes. O pai perdera a vontade de brincar... Até o Snobe se chegava à gaiola
e voltava com olhos húmidos e interrogadores.
Ao terceiro dia entrou em coma. O seu
corpo esfriara e enrijecera. O lento bater do coração deles se despedia.
O pai chorou uma lágrima dentro de si. E
descobriu que aquele bicho não vivera só na gaiola.
Jornal da Mealhada, 359, 16.05.2001 (sem atualização ortográfica)
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