Crónica (7)


À VOLTA DE UM COPO



Hoje decidi ir à procura da vida autêntica.

Sei de alguns amigos que se encontram aos fins-de-semana, umas vezes por mero acaso, outras de propósito, para conviverem à volta de um copo. Vou, pois, procurá-los, começando pelo café do Dionísio, como quem deseja apenas uma saborosa bica. Tenho aqui, de certeza, matéria suficiente para escrever um tratado sobre a vidinha. Hei-de arranjar arte e engenho para me transformar em personagem secundária.

Cá estou, de pé, junto ao balcão, a saborear o café. Escolhi o lugar estratégico, à custa de um saber feito de experiência observada: é de pé que se bebe, em círculo, para que o encontro da vida se não disperse. Hão-de aparecer, não tarda muito. Entretanto, vejamos a parte final da telenovela.

Eis que chega um deles. Homem novo ainda, na casa dos trinta, funcionário público, alguma cultura e inteligência quanto baste. Enganou-se quem esperava ver entrar um miserável bêbedo, tipo português clássico. Está gasto o tema do Portugal Velho. Hoje, bebe-se com sabedoria. A leitura que se faz do acto de beber é diferente. Em cada copo há um gesto social, uma filosofia de vida. Ah... A noite promete: em breve captarei a essência da vida. Isto vai ser o melhor livro do mundo.

Cumprimentei-o já com um aperto de mão. «Eu pago a bica do Parreira», aviso o Dionísio. Dois dedos de conversa banal. Tudo coisas da vida: a morte de quem estava vivo, a chuva que teima em cair, as eleições…

Chega-se a nós o Branco. A coisa está a compor-se. Que rico livro vai sair daqui! E sem necessidade de puxar pela imaginação. Pago também o café do Branco. Esta noite estou disposto a pagar tudo. Não ficarei a perder.

Mais meia-hora de conversa fiada. O café vai-se enchendo lentamente. Temos futebol na televisão. Alguém, ao fundo do balcão, começa a levantar a voz. Protesta contra o árbitro, contra a marcação da grande penalidade, contra o treinador e, por distracção, contra si próprio. Agora berra e dá murros no balcão. Coitado! Deve estar cheio de razão nestes assuntos importantíssimos. Dionísio recomenda moderação. O barulho incomoda-me, mas a cena diverte-me. Os clientes das mesas concentram-se no televisor. O fumo dos cigarros começa a esfarrapar-se pelo ar. Copos de cerveja e pires de tremoços ocupam as mesas. «É a vida que começa a invadir-me», penso. Dois amigos de ocasião juntam-se a nós. Tomo a iniciativa: «Ó Dionísio, uma rodada!». Causei surpresa __ e da grande! «Um escritor a beber!?... Um tipo porreiro! Até bebe uns copos com a malta!».

Goooolo!!!... Atiram-se braços para o ar, arrastam-se cadeiras, atropelam-se vivas e outras manifestações de alegria. Reclamam-se novas rodadas de cerveja. O Dionísio não tem mãos a medir. «Cá está o espectáculo fora do espectáculo! Cá está a vida a acontecer!», penso.

O Branco pede nova rodada. Que vem farto de água, lá na barragem onde trabalha. Não me incomoda outro copo de cerveja. Sei até onde posso ir e a mais não sou obrigado. Hoje quero apenas apalpar o terreno e ganhar-lhes a confiança. E, verdade seja dita, estou a gostar de quebrar a rotina. Sinto-me relaxado, animado, livre como um cavalo à solta num prado. A comparação é velha mas serve perfeitamente.

Acabou o futebol. Grande parte da freguesia começa a desandar: a que não gostou de perder. Chegam copos. Começo a recear o efeito. E até agora a tal vida autêntica tem sido copos atrás de copos. Olho para o relógio de parede e descubro a uma da manhã embaciada. Sinto que ultrapassei a tolerância máxima e que estou a chegar à segurança mínima.

Estou de copo na mão a fruir a actuação do Parreira. Abre os braços e declama: «Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!».

Não resisto a este apelo. Afinal, sempre há alguma cultura nestas andanças da vida. Salto para cima duma mesa, ergo o copo, procuro o equilíbrio, e continuo: «Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão rezaram!».

O pessoal aplaude entre risos. Descobri uma nova vocação. Mais uma golada enquanto vou descendo.

Aiiii...

A queda não foi grande, mas deixou-me sem força nas pernas para me levantar.

Será isto a vida autêntica?



Jornal da Mealhada, 364, 20.06.2001

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