À VOLTA DE UM COPO
Hoje decidi ir à procura da vida autêntica.
Sei de alguns amigos que se encontram aos fins-de-semana, umas vezes por
mero acaso, outras de propósito, para conviverem à volta de um copo. Vou, pois,
procurá-los, começando pelo café do Dionísio, como quem deseja apenas uma
saborosa bica. Tenho aqui, de certeza, matéria suficiente para escrever um
tratado sobre a vidinha. Hei-de arranjar arte e engenho para me transformar em
personagem secundária.
Cá estou, de pé, junto ao balcão, a saborear o café. Escolhi o lugar
estratégico, à custa de um saber feito de experiência observada: é de pé que se
bebe, em círculo, para que o encontro da vida se não disperse. Hão-de aparecer,
não tarda muito. Entretanto, vejamos a parte final da telenovela.
Eis que chega um deles. Homem novo ainda, na casa dos trinta, funcionário
público, alguma cultura e inteligência quanto baste. Enganou-se quem esperava
ver entrar um miserável bêbedo, tipo português clássico. Está gasto o tema do
Portugal Velho. Hoje, bebe-se com sabedoria. A leitura que se faz do acto de
beber é diferente. Em cada copo há um gesto social, uma filosofia de vida.
Ah... A noite promete: em breve captarei a essência da vida. Isto vai ser o
melhor livro do mundo.
Cumprimentei-o já com um aperto de mão. «Eu pago a bica do Parreira»,
aviso o Dionísio. Dois dedos de conversa banal. Tudo coisas da vida: a morte de
quem estava vivo, a chuva que teima em cair, as eleições…
Chega-se a nós o Branco. A coisa está a compor-se. Que rico livro vai
sair daqui! E sem necessidade de puxar pela imaginação. Pago também o café do Branco.
Esta noite estou disposto a pagar tudo. Não ficarei a perder.
Mais meia-hora de conversa fiada. O café vai-se enchendo lentamente.
Temos futebol na televisão. Alguém, ao fundo do balcão, começa a levantar a
voz. Protesta contra o árbitro, contra a marcação da grande penalidade, contra
o treinador e, por distracção, contra si próprio. Agora berra e dá murros no
balcão. Coitado! Deve estar cheio de razão nestes assuntos importantíssimos.
Dionísio recomenda moderação. O barulho incomoda-me, mas a cena diverte-me. Os
clientes das mesas concentram-se no televisor. O fumo dos cigarros começa a
esfarrapar-se pelo ar. Copos de cerveja e pires de tremoços ocupam as mesas. «É
a vida que começa a invadir-me», penso. Dois amigos de ocasião juntam-se a nós.
Tomo a iniciativa: «Ó Dionísio, uma rodada!». Causei surpresa __ e da grande! «Um escritor a beber!?... Um tipo
porreiro! Até bebe uns copos com a malta!».
Goooolo!!!... Atiram-se braços para o ar, arrastam-se cadeiras,
atropelam-se vivas e outras manifestações de alegria. Reclamam-se novas rodadas
de cerveja. O Dionísio não tem mãos a medir. «Cá está o espectáculo fora do
espectáculo! Cá está a vida a acontecer!», penso.
O Branco pede nova rodada. Que vem farto de água, lá na barragem onde
trabalha. Não me incomoda outro copo de cerveja. Sei até onde posso ir e a mais
não sou obrigado. Hoje quero apenas apalpar o terreno e ganhar-lhes a
confiança. E, verdade seja dita, estou a gostar de quebrar a rotina. Sinto-me
relaxado, animado, livre como um cavalo à solta num prado. A comparação é velha
mas serve perfeitamente.
Acabou o futebol. Grande parte da freguesia começa a desandar: a que não
gostou de perder. Chegam copos. Começo a recear o efeito. E até agora a tal
vida autêntica tem sido copos atrás de copos. Olho para o relógio de parede e
descubro a uma da manhã embaciada. Sinto que ultrapassei a tolerância máxima e
que estou a chegar à segurança mínima.
Estou de copo na mão a fruir a actuação do Parreira. Abre os braços e
declama: «Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!».
Não resisto a este apelo. Afinal, sempre há alguma cultura nestas
andanças da vida. Salto para cima duma mesa, ergo o copo, procuro o equilíbrio,
e continuo: «Por te cruzarmos, quantas mães choraram, quantos filhos em vão
rezaram!».
O pessoal aplaude entre risos. Descobri uma nova vocação. Mais uma golada
enquanto vou descendo.
Aiiii...
A queda não foi grande, mas deixou-me sem força nas pernas para me
levantar.
Será isto a vida autêntica?
Jornal da Mealhada, 364, 20.06.2001
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