AS PORTAS DO CÉU
Enquanto não publico um novo romance (talvez no próximo ano), decidi disponibilizar o meu primeiro romance, AS PORTAS DO CÉU (menção honrosa no Prémio Literário António Feliciano de Castilho, em 2000), em formato digital, EPUB, na plataforma Escrytos da Leya. Tem um preço simbólico de 4,99 Euros e a vantagem de não ocupar espaço na estante. Quem tiver curiosidade pode consultar o site: http://www.leyaonline.com/catalogo/detalhes_produto.php?id=57365
A Estação
Na última visita
descobri que a minha aldeia pertence cada vez mais ao espaço da memória. Quase
nada me prende à terra natal desde o falecimento do meu avô. À exceção da velha
casa e da estação, e de dois ou três amigos, que ainda lá permanecem presos às
raízes, o resto é apenas uma ideia muito vaga perdida na neblina da memória.
O encerramento da
pequena estação há alguns anos tinha acentuado o respirar moribundo que se lhe
ouvia. O meu avô, nessa época, dissera-me tristemente que o tempo parara com a
ausência dos comboios. Sentia a falta dos apitos rompendo a manhã, dos rostos
dos viajantes encostados às janelas e das pequenas novidades que desciam na
estação. Posso dizer, aliás, que o encerramento da estação foi o golpe fatal na
vida da aldeia e, principalmente, na de meu avô.
Quando era pequeno,
ouvia a minha avó desabafar, nos momentos de exaltação, com os cabelos
desalinhados sobre a testa e a colher de pau na mão, que estava cega quando
casou com o avô. Estas cenas repetiam-se quando ele decidia fazer as malas e
anunciar que ia partir para uma viagem sem regresso, que ia finalmente ao
encontro do seu el-dourado. O meu pai, habituado a estas cenas, emprestava-lhe um
pouco de realismo: «Pois vamos os dois! É só fazer a trouxa num segundo.» A minha
avó lançava as mãos à cabeça, que tal pai, tal filho. Mas o avô é que rejeitava
logo a proposta: «Não te metas na minha vida. A viagem é minha e do Necas. Só
de nós os dois, ouviste?»
O Necas era outro
sonhador como ele. Desde a infância que combinavam sair da aldeia, de ir à
procura de uma outra vida num outro lugar. A primeira vez que isto aconteceu,
deu falatório durante meses. Eles chegaram à estação e sentaram-se no cais à
espera. O chefe estranhou a presença dos garotos e quis saber das suas
intenções. Esperavam um amigo no próximo comboio. O homem deixou-os em paz. Só
descobriu a matreirice quando os garotos subiram para o comboio em movimento.
Avisada a estação seguinte, a viagem terminou aí e o atrevimento em casa com
uma grande sova.
As tentativas de evasão
repetiram-se. Era uma força que chegava de repente, sem qualquer motivo
aparente, e impelia-os a imaginar planos de viagens. Durante uma semana
deliravam com os preparativos. Não havia casa que não soubesse dos seus projetos.
Chegaram a despertar invejas e a serem vistos como heróis aquando da primeira
vez que anunciaram publicamente a partida. De outra coisa não se falava na
taberna, à mesa, à lareira, em qualquer sítio onde estivessem pelo menos duas
pessoas. Os habitantes perguntavam o destino da viagem e eles respondiam que só
pensariam nisso na estação. E esta resposta aguçava ainda mais a curiosidade,
dando azo a efabulações de tal ordem que chegou mesmo a espalhar-se o rumor de
que haviam sido eleitos por Deus para uma missão divina.
No dia da partida, a
aldeia acompanhou-os à estação. Os mais idosos recomendavam mil cuidados com as
sete partidas do mundo, as moças solteiras pediam prendas e promessas de
casamento, os familiares queriam uma carta sem demora, e só os cães e os gatos
assistiam a tudo de boca calada. Durante o percurso fizeram-se apostas. Um alqueire
de milho, uma carrada de estrume, duas galinhas e um porco asseguravam a
certeza do destino dos jovens aventureiros. Entraram na estação e sentaram-se
em cima das malas à espera do comboio. Assim estiveram algum tempo; calados, de
olhos perdidos na lonjura dos carris. Os espectadores murmurando destinos.
O chefe da estação veio
perguntar-lhes se não tiravam bilhete. E a multidão arrastou-se em peso,
desejosa de uma palavra que ditasse a sua sorte na aposta. Era, realmente,
necessário tirar bilhete, pensaram os dois simultaneamente. Mas para onde?
Um silvo ao longe e o
ranger dos carris anunciaram a aproximação do comboio. Procuraram-no com a
vista e leram o futuro no rosto que vinha ao seu encontro. Vamos? Para onde?
A locomotiva chegava ao
cais. Os passageiros abriram as janelas e mostravam espanto e curiosidade por
verem tanta gente. Estariam à espera de alguém importante? Talvez um ministro?
O chefe, impaciente, perguntou se iam ou ficavam. Havia horários a cumprir.
Vamos? Para onde?
«Então, o que decidem?»
Olharam os passageiros,
os conterrâneos e o comboio.
«Que fazer? Ir? Neste
comboio que, só agora reparamos, não nos inspira confiança? Vamos mas é embora!
Este não é o nosso comboio. Outros virão!»
Pegaram nas malas e
voltaram à aldeia. Atrás deles ficavam a desilusão dos apostadores e o apito do
comboio que tinha um destino a cumprir.
A estação é um esboço
pálido no lugar de outrora. Só a minha memória a conserva na vida que já lhe
não pertence. O telhado desabou e ficaram as tábuas apodrecidas à beira da
agonia. As ervas invadiram a linha cobrindo os carris ferrugentos. Ao longe, uma
antiga carruagem lembra viagens imaginárias. Mas está tão parada como o avô,
nas tardes de melancolia, a espreitar os comboios que chegavam e os rostos dos
passageiros que vislumbrava às janelas. E nem um só apito a anunciar o novo
dia.
Sei, avô, das
tentativas que fizeste ao longo da vida para embarcar. Era uma súbita vontade
de partir que te nascia, a ti e ao Necas. A população ria-se dos vossos
intentos — até que os vossos sonhos se tornaram rotina e passaram a ser
encarados como um simples habitante da aldeia. E quando anunciavam a data da
viagem nem uma aposta nascia da boca das pessoas, nem sequer para apostar que
dessa vez era a sério. Mas tu sabias que a aldeia precisava das vossas
encenações.
Certo dia, resolveste
partir sozinho, sem a companhia do Necas. Começaste a desconfiar de que a culpa
era dele, que impedia uma decisão rápida e irreversível, e que, além disso, o
mesmo destino não podia ser tomado por dois. Chegaste à estação, pela primeira
vez dono de uma viagem clandestina. Passeaste pelo cais enquanto ias pensando
no teu destino. Pouco depois, entrou na estação o Necas. Mediste o tamanho da
tua traição e imaginaste a fúria do teu amigo. Olhaste para o chão,
envergonhado, e quando levantaste os olhos reparaste que ele se afastava de ti.
Nem uma palavra te dirigiu, mas as malas que transportava disseram-te toda a
verdade.
Chegou o comboio e
parou à frente do vosso destino.
Ir? Agora mesmo? Para
onde? É este o meu comboio?
O comboio partiu.
Estou no centro da
aldeia. Pergunto pelos amigos e respondem-me que emigraram. Partiram!
Paciência! Terei de me contentar com a velha casa. Subo a rua e imagino a sua
aparição: uma casa térrea, caiada de amarelo com a pitoresca porta de postigo incorporado.
Viro à direita e paro subitamente. Não! Não esperava ver isto: o telhado arrombado,
a porta aberta às ervas e urtigas. A casa em ruínas. Fico parado a curta
distância, de olhos fechados. Não é esta casa que há de habitar dentro de mim.
É tempo de partir, de
deixar para trás esta aldeia.
Sabes, avô, lamento que
não tenhas acompanhado o Necas no último comboio. Lamento que tenhas ficado tão
só como a estação!
1994
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