OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE (3)


Edição da polémica Chiado Editora, afinal a jangada dos autores náufragos e a prova de que há qualidade fora do clube dos autores-do-costume a que as editoras nem sempre ligam ou em quem não apostam, não sendo portanto promovidos. Pela minha parte estou atento a eles… mas eu faço o que quero!
Outro excelente romance! Passará desapercebido pelas razões do marketing editorial, mas no mínimo eleva-se ao nível dos que preenchem os escaparates das livrarias e anunciam outros prémios ou terem sido finalistas dos mesmos, se bem que este também apresente uma menção honrosa!
António Breda é um escritor maduro, um homem com uma história e uma terra, que vive a sua vida nessa terra e escreve sobre elas, num estilo culto todavia corrente, claro e fácil de ler, por isso atraente para qualquer leitor - talvez fruto da experiência de professor e de comunicador?
Suavemente condimentado pela boa disposição que nos contagia, o tema e os personagens que não sendo originais são tratados de forma inédita no nosso panorama literário, numa trama inteligentemente urdida e muito bem desenvolvida, encadeada na lógica da narrativa e a par desta, sem recurso ao andar-para-a-frente-e-para-trás como vem sendo costume e sobretudo montada numa rápida sucessão de curtos episódios que resulta muito bem pelo dinamismo que lhe imprime e não pesa ao leitor seguir a acção.
Não deixa de ser notável localizar-se numa época em que o paralelo é evidente para o leitor atento e que deve ter sido escolhida por nela se encontrar tudo para um romance-fábula, onde ao comentar e descrever os acontecimentos passados estabelece um inegável e claro encadeamento de acontecimentos coincidentes com a actualidade política, económica e social que vivemos hoje e cujo desfecho desconhecemos, ao contrário daquilo que se passou e ele narra!
Ficamos presos e amigos deste Valdemar, um tipo como tantos que conhecemos e com muito de nós-mesmos, um empreendedor, desenrascado e que até é bom-tipo no fundo… moldado e condicionado pelo mal e pelo bem que o rodeiam, conhece baixos e altos e nem por isso perde o seu modo de ser.
Parece um bocado da história de Portugal e do seu povo, sem dúvida!
Aconselho vivamente, até para que se perceba que não são só as “grandes editoras” quem tem o apanágio dos bons autores e bons romances! Advogo que alimentemos a clandestinidade saudável, a que não esconde terroristas mas de onde surge tanta coisa boa, sejam os autores marginais ou as chouriças da D. Rosalinda e o vinho do Sr. Tadeu, sem marca ou rótulo mas com o sabor genuíno e nosso.
António Luiz Pacheco, in Horas Extraordinárias, 01.10.214

ENTREVISTA




Quem é António Breda Carvalho?
António Breda Carvalho é um cidadão mealhadense, com 54 anos de idade, que gosta de ler, escrever, correr e jogar bridge (jogo de cartas). Aprecia o silêncio, o sossego, a boa convivência e a solidariedade.

É professor de Português, na vida profissional. Ser docente nesta área implica ser escritor ou vice-versa?
Ensinar português não implica ser escritor porque são competências distintas. A prova disto é a existência de escritores em todos os sectores profissionais. Um professor de português sabe ensinar literatura, mas pode não saber escrever um texto literário. No meu caso, ser professor e escritor, simultaneamente, é mera coincidência que contribui para me sentir feliz como pessoa e realizado como profissional do ensino.

Quantas obras já publicou?
No total, 11 obras.
Estudos locais: Mealhada – A Escrita do Tempo; Um Século de História – Misericórdia da Mealhada.
Estudos regionais: Acúrcio Correia da Silva e a Bairrada.
Antologias literárias: O Buçaco na Literatura; Montemor-o-Velho – Percursos Literários; Escritas e Escritores da Bairrada.
Contos: In Vino Veritas; A Ver Navios.
Romances: As Portas do Céu; O Fotógrafo da Madeira; Os Azares de Valdemar Sorte Grande.
O Fotógrafo da Madeira inaugura a segunda fase da minha vida literária. Com este romance, passei a assumir a escrita literária com mais seriedade e com mais maturidade.

Como começou este “bichinho” pela escrita literária?
O Prémio Literário Região da Bairrada, em 1989, despertou-me o “bichinho” da escrita. Importante para a continuidade foi o círculo de escritores da então fundada Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada, que durou sete anos. Hoje relaciono-me e convivo com um novo grupo de escritores, da Bairrada e da Gândara, e com alguns académicos. Somos uma família literária.

O romance que apresentará, no próximo sábado, na Mealhada, intitula-se “Os Azares de Valdemar Sorte Grande” e recebeu uma Menção Honrosa da Câmara da Figueira da Foz. Já arrecadou outros prémios?
De 1989 a 2013 contabilizo 19 distinções. No entanto, de 2002 a 2007 escrevi apenas um conto; foi distinguido. Depois nova paragem até 2010, ano em que escrevi o romance O Fotógrafo da Madeira. A partir daqui nunca mais parei. 16 prémios de conto e 3 romances premiados: As Portas do Céu, O Fotógrafo da Madeira e Os Azares de Valdemar Sorte Grande.
 

De que falam as suas obras?
Na generalidade, as minhas obras abordam temas sociais plasmados em enredos ficcionais, integrando também reflexões acerca da condição humana. O registo literário varia em função do tema e da intenção que quero dar à obra.

Qual a próxima?
Não sei qual será o próximo romance a ser publicado. Nem sei se publicarei pela ordem cronológica de escrita; depende de muitos fatores. A obtenção de um prémio pode precipitar a publicação de um romance em detrimento de outros mais antigos. Só tenho a certeza de que a morte é a única coisa que me poderá impedir de escrever e publicar.
 
Jornal da Mealhada, 17.09.2014

RECENSÃO A "OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE" (2)


RECENSÃO POR CRISTINA TORRÃO (escritora)

A personagem principal deste romance, natural da Figueira da Foz, nasceu a 25 de abril de 1874, uma escolha interessante por parte do autor, já que pretende retratar o tempo da passagem da Monarquia à República, em Portugal. Sorte Grande, como a própria personagem explica, não é alcunha, o pai chama-se Rodolfo Marques Grande e a mãe Ana Roda da Sorte. Sendo filho de pescador, Valdemar não tem praticamente hipóteses de subir na vida. Mas põe-se com ideias. Primeiro, porque lhe elogiam a inteligência na escola, aprende muito bem a ler e a escrever e descobre gosto pelos livros. Segundo, porque a sua mãe e, mais tarde, a sua irmã, trabalham no palacete Vila-Real, propriedade do barão local. Tanto o barão, como a esposa, gostam do seu jeito e da sua esperteza (e também a filha de ambos, que se torna na grande paixão do rapaz). O convívio naquela alta roda abre-lhe o apetite, Valdemar decide ser alguém na vida

Irá, porém, encontrar muitos obstáculos. O primeiro é livrar-se do seminário. Com o seu jeito para os estudos, tanto os pais, como os barões de Vila-Real, assim como o pároco local, são de opinião de que ele deve ser padre. Valdemar devia ter aprendido logo a lição: os ricos podem achar-lhe piada, mas não o admitem no seu meio, ao seu nível. Ser padre é o destino mais indicado para um filho de pescador com algum cérebro, um destino que consideram mais do que privilegiado. Ao recusar tal benesse, Valdemar compromete toda a sua vida. Ele possui, porém, força de vontade. A seguir a cada derrota, torna a levantar a cabeça e é isso que o torna simpático, aos olhos do leitor. À medida que o enredo avança, contudo, vai-se tornando cada vez mais oportunista, perdendo os escrúpulos. Mas não vou revelar mais pormenores.

O romance, no seu estilo irónico, um pouco cínico, prendeu-me do princípio ao fim. Penso que fazem falta livros destes em Portugal, livros que sabem entreter, sem menosprezar a qualidade. António Breda Carvalho constrói muito bem o evoluir do carácter da sua personagem. Valdemar embrenha-se na política, os tempos a partir de 1910 são propícios a quem procura a sua oportunidade. Mas é claro que a ideologia partidária passa para um plano secundário, bem atrás dos interesses pessoais dos seus protagonistas.

Além das peripécias de Valdemar, o leitor é presenteado com um bom o retrato da Figueira da Foz daquela época e, no fundo, de todo o país. António Tavares, vereador do Pelouro da Cultura da Câmara da Figueira da Foz e finalista do último Prémio LeYa, escreve, no prefácio: «Mais do que um figueirense, Valdemar é um homem de um certo Portugal, num período que vai do fim da Regeneração à I República. Pobre e rude como o país, usa a sua esperteza de "comediante" para sobreviver aos maus momentos».

OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE - recensão de António Canteiro


OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE


Prémio literário João Gaspar Simões – Menção de Honra

(Romance) Chiado Editora - 255 págs.


 
 
 
 
 

António Breda Carvalho (ABC) brindou-nos recentemente com mais um espantoso romance, OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE - Prémio literário João Gaspar Simões – Menção de Honra - Chiado Editora (2014). Este livro centra a sua acção na cidade da Figueira da Foz, e surge na linha do anteriormente publicado pela Oficina do Livro (2012), “O Fotógrafo da Madeira” – Prémio literário com o mesmo patrono, dois anos antes -, e que situava o enredo e as personagens na cidade do Funchal. Ambos os livros têm idêntico tempo histórico (meados do séc. XIX, o primeiro, e dobrar do século, o segundo) e pano de fundo assente em questões políticas e sociológicas similares. ABC apresenta neste, tal como no livro anteriormente premiado, um domínio maduro da Língua Portuguesa e um à-vontade extraordinário nos diálogos, especialmente, naqueles que se ligam ao jogo, à boémia noturna e aos casinos.


Um romance escrito na primeira pessoa, muito envolvente e irónico, com o protagonista a relatar, desde o início até ao fim, as peripécias por que passou. O momento em que Eduardo Matias (o patrão, marceneiro) coloca a manápula no ombro, o ombro de Valdemar, inicia uma vida de maturidade, de aprendizagem, que elucida também o leitor nas questões da História de Portugal, (Monarquia e República), culminado o enredo deste romance na crise da 1ª Grande Guerra Mundial.

Aquela bengala dançando na minha mão e a cigarrilha consumindo-se de prazer ao canto da boca é um raro momento de literatura, bem como, na pág. 54, quando soprou a poeira da peça que segurava e falou com voz tremida, enfim, como nas noites de amor que nunca conta em pormenor a Judas, o ouvinte (narratário) desta estória. O mesmo Judas que nos surpreende no fim, o Judas que negou Cristo por três vezes, tal como a sua amante Argentina o negou cedendo a seu pai (ao valor da herança), ao marido (indo viver com ele para Lisboa), e finalmente ao seu filho, ainda bebé: Mamã, quem é aquele homem sem uma mão; aquele maneta é um homem que já foi rico e agora não tem cheta. A começar nos apelidos do próprio protagonista, Sorte Grande, quase todos os nomes das personagens tem associada alguma simbologia: Argentina, a amante (mulher de dinheiro, l’argent); o pai (de baixa estatura física) era Rodolfo Marques Grande; a mãe era apelidada Roda da Sorte; a irmã, a mais nova do clã Sorte Grande, era a Delfina, etc..

Mas há ainda outra simbologia, associada a grandes escritores e livros que o protagonista lê em pontos-chave da evolução (ou queda) da sua vida: Os Simples, de Guerra Junqueiro; A Queda de Um Anjo, de Camilo; e nomeia, ainda, Eça de Queirós e outros grandes escritores da época.

Como o próprio ABC refere: trata-se de um livro simples, escrito de rajada, mas não se trata de um livro inocente, pois a complexidade desta narrativa surge das releituras que podemos vislumbrar a cada passo, e em especial no FIM, como se de três socos no estômago se tratasse, num baque quase em simultâneo: (1) o desvendar do personagem Judas, (2) o revelar-nos o filho de cabelo ruivo de Valdemar, já com 4 anos de idade, com as características físicas do pai (ruivo); (3) o apresentar-nos o homem que já foi rico, Valdemar, que foi proprietário de uma grande empresa (na pesca do bacalhau) e agora pede esmola com o cão nas ruas da Figueira da Foz.

Nesta obra admirável, sorvedora do nosso tempo como sanguessuga, poderia começar no fim, o fim como início, prólogo, epílogo, ou vice-versa, como pescadinha de rabo na boca, que gira e se consome a si própria, incessantemente. Apenas lhe encontro um se não, e já perto deste fim: repetidas cacofonias, na pág. 249: uma mão, sete vezes repetida, ainda que para dar ênfase ao maravilhoso texto em que se insere, pecará por excesso.

Por último, é pena que grandes editoras do mercado não agarrem pérolas de escrita como esta, OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE merecia maior distribuição/divulgação, em suma, e, por analogia, este romance devia chegar a todo o mundo, ser lido por muita gente.

ANTÓNIO CANTEIRO
Barracão – 2014.08.30

OS AZARES DE VALDEMAR SORTE GRANDE

 
PUBLICAÇÃO DO PREFÁCIO DO MEU NOVO ROMANCE
 
 
 

«A vida das comunidades é feita de muitas vidas e é do conjunto das suas narrativas que se faz, também, a história coletiva. Valdemar Sorte Grande nasceu em 1874 na, ainda vila, Figueira da Foz, e conta-nos a sua desdita em 1915, altura em que já decorria a I Guerra Mundial e passava um ano da catástrofe que destruiu o Teatro Príncipe.
A vida do herói deste belo romance é tão recheada como a da cidade que o viu nascer; são tempos de grandes novidades e transformações. A Figueira deveria ter, na altura, pouco mais de quatro mil habitantes, mas prosperara pela iniciativa de uma burguesia comercial alicerçada no caminho-de-ferro e no porto.
Valdemar, como a Figueira, foi fintando a má sorte, umas vezes com sucesso, outras não, mas fez-se homem e gente. Dormiu na praia, remendou redes, deambulou pelas ruas do Bairro Novo e pelas entradas festivas dos casinos, enamorou-se da beleza das espanholas, rezou na capelinha de Stª Catarina, correu atrás do Americano, viu cinema no Parque-Cine, assistiu à construção do mercado e, ambicioso, sonhou um dia ter “pés, cu, cabeça, ouvidos e língua para frequentar lugares seletos”.
Fez-se republicano, cantou A Portuguesa nas reuniões da Marcenaria Olimpo e conheceu o desgosto da morte do pai, pescador, náufrago à entrada da barra depois de uma jornada de pesca. Assistiu à fundação do Ginásio e quis ser atleta. A sorte bafejou-o e enriqueceu-o. Foi armador, amou, desamou, enganou e foi enganado.
Mais do que um figueirense, Valdemar é um homem de um certo Portugal, num período que vai do fim da Regeneração à I República. Pobre e rude como o país, usa a sua esperteza de “comediante” para sobreviver aos maus momentos. Como um pícaro tardio, mas dentro do prazo, Valdemar faz-nos rir e ao mesmo tempo enternece-nos; pelo que sonhou e pelo que viveu.
Com Valdemar Sorte Grande acabamos por assistir, também, à história da cidade e do país, num retrato original e cínico; mesmo sem a sua sorte, em muito dele nos podemos rever.»
António Tavares*
*Vereador do Pelouro da Cultura da Câmara da Figueira da Foz e escritor
 


A MALA VERDE


Em março de 1945, numa manhã cinzenta e fria, o chefe interrompeu o ofício que eu datilografava na pesada Olympia, para me dizer que estava na hora de lhe mostrar o que tinha aprendido no curso. Não foi bem assim que falou, lembro-me tão claramente como a água dos poços desse tempo. O que disse, literalmente, foi:
Menino, prepara-te para a tua prova de fogo.
O inspetor Hélio Gaspar apoiava-se na autoridade dos seus sessenta anos, e muito mais na graduação profissional, igualzinha à proeminente barriga, para me tratar paternalmente. Aliás, todos os estagiários eram sujeitos a esta condição de meninos imberbes. Depois, admitidos ao serviço da Polícia de Investigação Criminal, teriam direito a um tratamento mais adulto, com a palavra rapaz a marcar a subida de posto.
Até que enfim! exclamei, quase saltando da cadeira. De pé, mais interessado na notícia do que nos primeiros chuviscos que faziam cócegas na vidraça da janela por detrás das costas largas do chefe, eu já parecia um verdadeiro polícia a espremer um criminoso. Chefe, diga tudo o que sabe!
Aqui, quem dá ordens e decide sou eu! Digo quando entender que devo dizer.
Ordenou-me que terminasse rapidamente o serviço que tinha em mãos, pois dentro de dez minutos teríamos uma viagem de automóvel pela frente. Sentei-me, obediente, e acabei de redigir o ofício com umas marteladas nervosas no teclado da robusta Olympia. Sentia-me entusiasmado com o meu primeiro caso e bastante curioso relativamente à sua natureza. Política? Roubo? Crime? O inspetor Hélio Gaspar tinha abandonado o gabinete e voltara no preciso momento em que eu vestia o sobretudo, precavendo-me contra a chuva grossa que caía ruidosamente. Sorriu, satisfeito com a minha prontidão, e soltou um «vamos lá, menino!».
O Volkswagen pegou à primeira, e deixei-o carburar uns goles de gasolina; depois acionei o limpa-para-brisas e perguntei:
Chefe, para onde é a ida?
Cantanhede.
Não era viagem cansativa percorrer os quilómetros que separavam Coimbra dessa vila. Conhecia Cantanhede, de passagem a caminho dos palheiros de Mira, durante os domingos de verão passados na praia com os meus pais e irmãs. Quando o carocha passou a Geria, apanhei a estrada de Ançã. A chuva carregava cada vez mais, tanto como o céu escuro, e tive o cuidado de acender os faróis e de aumentar a velocidade do limpa-para-brisas, ao contrário do andamento do carro. O meu chefe ia todo lorde no banco do lado: as pernas escancaradas, as costas repousadas no banco quase oblíquo e a barriga bojuda a bailar ao sabor da trepidação do carocha.
Está um tempo de caca! queixou-se, os olhos colados ao vidro. Este inspetor nunca dizia: «Está um tempo de merda!» Era sempre: «Está um tempo de caca!», que servia para todas as estações do ano.
E logo borrou a limpidez da palavra caca e do ambiente com uma bufa silenciosa mas mortífera. Apressei-me a descer o vidro, apenas uma fresta de alívio. Espreitei-lhe a pança pelo canto do olho. Haveria mais borrasca intestinal? Aquilo era uma autêntica botija de gás, daquelas redondinhas, de treze quilos domésticos. Alguns segundos depois, quando o cheiro invadiu todo o compartimento, ouvi a frase sagrada:
Este gás é hélio. Um dos melhores! E riu-se desbragadamente, fazendo jus à alcunha de Inspetor Gás, ao mesmo tempo que acendia um cigarro.
Que rico dia de batismo policial: uma viagem debaixo de um temporal tremendo e uma asfixia de cheiros estonteantes! Aproveitei a sua boa-disposição para atirar o barro à parede:
Então, chefe, qual é o problema?
Largou duas fumaças. Tossi. Cofiou a pera grisalha e condescendeu:
Assassínio elucidou, laconicamente.
Assobiei. Uma estreia honrosa para mim. Este estagiário iria mostrar-lhe quão injusto era o tratamento por menino.
Há suspeitos?
Não havia. E mais uma névoa de fumo para cima de mim, que nada me aborreceu. Era bom que não houvesse suspeitos, teria mais possibilidades de mostrar o meu faro inato para casos detectivescos.
De casos difíceis é que eu gosto, chefe.
Ainda és um menino, não te esqueças disparou à queima-roupa. Pior do que gás hélio!
Por pouco tempo, chefe atrevi-me a responder.
Esboçou um sorriso. Desceu o vidro, um palmo, e deixou cair o coto do cigarro na estrada encharcada.
Não há suspeitos explicou porque o autor do crime está identificado.
Que grande desilusão! Era, realmente, um serviço para meninos. Um caso tão difícil como bater um ofício na monocórdica Olympia.
Chama a isto uma prova de fogo, chefe? reagi, visivelmente mal-humorado.
Claro!
Vejo tudo escuro à minha frente!
Riu-se e ajeitou-se no banco, cujas molas rangeram.
A tua função é conseguir uma prova que incrimine o gajo. Pelas informações que chegaram à delegação, é óbvio que só pode ter sido esse gajo. Mas precisamos de uma prova irrefutável. É aqui que tu entras: o teu primeiro teste.
Gajo era a segunda palavra mais usada por ele, a seguir a menino. O caso começava a agradar-me; tanto como as condições meteorológicas: a chuva amainava, as nuvens escuras dissipavam-se e a cor da manhã abria-se à frente do Volkswagen. Isto coincidiu com a chegada aos arrabaldes de Cantanhede.
E agora, chefe? perguntei ao aproximar-me do centro da vila.
Sempre em frente.
Para a praia de Mira, chefe? Vim desprevenido, não trouxe calções de banho brinquei com a situação. O inspetor simpatizava com as minhas brincadeiras de menino. Riu-se à farta. E depois arrependi-me da piada porque ele abriu a botija de gás.
Está um tempo de caca lamentou-se.
Segui em frente, convencido de que o destino era a vila de Mira ou a praia. Mas logo corrigiu:
Vai em frente, e daqui a uns quilómetros cortas à esquerda, quando encontrares uma placa virada para São Caetano.
E se a placa estiver ao contrário, chefe?
Olhou para mim, sem resposta imediata. O menino tinha-o encurralado. Desceu o vidro da janela, desta vez até ao limite, meteu a careca de fora e cuspiu contra a deslocação do ar.
Se a placa estiver virada ao contrário, lixamos o gajo que fez isso.
Fui obrigado a rir-me, por solidariedade profissional. Alguns quilómetros depois, suspendi o paleio, preso a uma ideia que me assaltara a mente, no momento em que avistei ao fundo uma placa que indicava o lugar de Febres.
Ó chefe, dá para fazer um desvio? apontei a placa e continuei: Gostava de conhecer esse lugar.
Tens tempo. A vítima é um gajo daí.
E vamos para São Caetano? Não percebo, sinceramente.
Vamos para o local do crime, primeiro.
Soltei um ah de surpresa. E ele surpreendeu-me também.
O que tu gostavas de conhecer em Febres sei eu bem.
Desacelerei, pasmado com a observação, e obrigado a isso por ter atingido o ponto de viragem para São Caetano. Pedi explicações, mas só depois de me ter posto, inutilmente, a adivinhar. A resposta chegou-me aos ouvidos como uma cuspidela:
Queres conhecer a casa do escritor que andas a ler.
Ando a ler tantos escritores, chefe respondi, mortalmente atingido, intrigado com o conhecimento que ele tinha da minha vida privada.
Sim, menino. Infelizmente, andas a ler muitos autores perigosos.
Como é que o chefe sabe disso? sondei, a medo.
Muitos anos nesta profissão. Por isso é que sou chefe, e tu, menino.
Eu andava a ler autores perigosos sem saber. Lia Alves Redol, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, José Gomes Ferreira … Desafiei-o: o que havia de perigoso nestes escritores?
Literatura subversiva, menino. Escritores comunistas. O comunismo é o inimigo número um da Nação. Foge dele, se quiseres ser alguém com futuro.
Retorqui que não via nada de mal nestes escritores. Respondeu-me, ironicamente, que por não haver qualquer perigo é que o livro que eu andava a ler tinha sido proibido pela censura. Senti-me completamente nu. Um bebé indefeso, a balbuciar:
Que livro, chefe?
O romance Alcateia, do Carlos de Oliveira. Por isso é que estás tão interessado em ir a Febres. Queres conhecer a casa onde ele viveu com os pais.
Fiquei boquiaberto. Ele conhecia a minha vida particular e os meus pensamentos tanto quanto eu?
Ó chefe, o meu interesse é meramente literário. Eu nem sabia que o livro estava carimbado pela censura. Isso aconteceu, de certeza, depois de o ter comprado na Coimbra Editora, no ano passado. Eu cá não percebo nada de política.
É bom que não percebas. Pensa bem na tua vida. Estou de olho em cima de ti.
E com esta ameaça chegámos à povoação de São Caetano, onde, por indicação dele, estacionei o carocha junto ao largo da capela. Saiu do carro. Não chovia, mas senti o vento frio no nariz. Apeado, fez-me sinal de espera com a mão sapuda, enquanto se dirigia a um gandarês que conduzia uma carroça. Percebi que lhe perguntava qualquer coisa, pois o homem virou-se para trás e apontou a estrada com a mão calejada de trabalho. Hélio Gaspar regressou ao automóvel e mandou-me arrancar, sempre em frente. Obedeci, calado, ainda irritado com o raio da conversa sobre os escritores comunistas. A estrada, de terra batida e cada vez mais estreita, enfiava-se pelo coração dos pinheirais. Passámos por uma pequeníssima povoação perdida no meio do mato, não mais de cinco casais no fim do mundo. Ao longe, numa zona descampada, terra de semeadura, avistava-se um charco. Toda esta paisagem me era estranha, por estar tão habituado à vida citadina. Comecei a ficar impaciente e perguntei-lhe se faltava muito.
Corujeira! Sempre em frente esclareceu, olhando o exterior, ao mesmo tempo que murmurava: Está mesmo um tempo de caca!
Parámos, finalmente, numa aldeia que supusemos ser a referida Corujeira, pela dimensão deste lugar em relação aos casebres que deixáramos para trás. Entrámos na taberna, ao pé do largo à beira da estrada, e o meu chefe, saudando a mulher embrulhada nuns trapos pretos, por detrás de um balcão de madeira tingido de vinho, confirmou, primeiro, o nome da terra, e depois perguntou-lhe se sabia alguma coisa do ourives morto. Tratava-se de um ourives, e só nesse momento o meu chefe o dizia, não a mim, mas a uma taberneira. A mulher esbugalhou os olhos (deve ter deduzido a nossa profissão), muito mais a boca desdentada, e despejou o pouco que sabia do acontecimento dessa manhã.
Uma desgraça, senhores! Deus o tenha em paz!
A pobre mulher não desembocava informações concretas, apenas sentimentos inócuos em catadupa, e o Inspetor Gás teve de lhe escorropichar toda a saliva até conseguir apurar o caminho para a quinta da Murteira. Saímos da taberna, depois de termos emborcado dois tintos, remédio que o meu chefe garantiu ser eficaz contra o frio, apesar de me ter arrepiado todo por dentro.
Fomos a pé dali à quinta, a fazer o mapeamento do terreno, quando subitamente nos deparámos com um magnífico solar que se escondia por detrás de um maciço de árvores, provavelmente murtas. O meu chefe assobiou. Quem diria? Quem diria que, numa terreola destas, havia uma casa majestosa? O acesso ao eirado era direto, sem cerca ou portão a impedir a passagem, a não ser o ladrar assanhado de três cães que, felizmente para nós, se encontravam presos por correntes. O forte alarido dos cães devia funcionar como sino, porque a porta principal entreabriu-se e uma cabeça coberta por uma touca de cozinheira espreitou-nos, e logo desapareceu.
Ficámos parados, fora do alcance dos cães, à espera de que alguém nos viesse receber, o que veio a acontecer passados dois minutos. Era um rapaz com ar aristocrático, que, depois da nossa identificação, se apresentou como neto do barão da Murteira, e exclamou:
Ah, vêm por causa do ourives morto!
 E mais disse, sem arredarmos pé do mesmo sítio, que os pais e o avô se encontravam ausentes, em viagem demorada por Lisboa, onde tinham ido tratar de assuntos familiares. Tirou do bolso uma caixa de cigarrilhas, e duas delas ficaram a arder, uma na boca do inspetor Gaspar e outra na do aristocrata, que entretanto anunciara chamar-se Alexandre, sem dom, frisou, porque naquela casa só o seu avô tinha o privilégio de ter título nobiliárquico. Disse isto com um riso cínico, segurando a cigarrilha com a mão esquerda. E a voz dele tornou-se mole e triste, quando, interrogado pelo chefe acerca do autor do telefonema para o posto da GNR de Mira, assumiu ter sido ele mesmo a tomar essa diligência, após o caseiro da quinta, o Casimiro, ter chegado ali, esbaforido, com as botas e as calças enlameadas, a dar conta da sinistra descoberta: o Júlio da Moita, ourives ambulante de Febres, boiava na água do poço grande.
Por instinto, sem algum motivo especial, olhei o meu chefe nos olhos, e ele aproveitou o ensejo para me comunicar uma decisão que me deixou incrédulo:
Tenho uns assuntos a tratar em Aveiro. Volto depois do almoço. O caso está por tua conta.
Despediu-se do Alexandre e abalou pelo caminho bordejado de vegetação, deixando-me impiedosamente desamparado como um funâmbulo inexperiente. Fiquei a vê-lo, uma forma airosa de ganhar algum tempo para delinear mentalmente um programa de ação. E a primeira ideia que me ocorreu foi perguntar ao meu interlocutor onde se encontrava o corpo da vítima.
Ao pé do poço grande. Por minha decisão, o caseiro e alguns homens da quinta retiraram o corpo da água. Aposto que custou menos aos meus homens tirar o ourives do poço do que ao assassino matá-lo.
Achei interessante esta comparação e indaguei, com um tom de voz bastante policial, o fundamento da afirmação. Ele esmagou a cigarrilha com a biqueira do sapato de couro, agasalhou as mãos nos bolsos da samarra com gola de raposa, imitando as minhas mãos nos bolsos do sobretudo, e respondeu, com displicência:
É elementar: nesta altura do ano, o poço grande enche sempre.
Quer então dizer que não esteve nesse local?
Claro que não! Acha-me com cara de campónio?
O aristocrata sem dom queria morder-me as canelas.
Se não esteve lá, nem viu o corpo, como sabe que foi crime? É bruxo? E, antes de ter tempo de reação, rachei-o, com voz destemida: Nem imagina o jeito que dava à Polícia de Investigação Criminal um bruxo. Muito melhor do que um cão treinado.
Que pena o chefe não ter assistido a esta resposta de antologia!
O jovem Alexandre, talvez da minha idade, estremeceu e fixou-me o olhar por instantes. Acendeu outra cigarrilha, demoradamente, a fazer de propósito, e só então se justificou:
O caseiro, o Casimiro, disse-me que o infeliz tem uma mossa na cabeça.
O autor do crime tinha sido esperto: a água lava todas as provas; assim, o crime não tinha assinatura. Andei alguns passos, pensativo, também para aquecer os pés e afastar-me dos cães que pareciam mais próximos de mim. A empregada espreitava-nos por detrás da cortina da janela. O aristocrata não tinha vontade de me convidar para um café quente, especado no terreiro como um campónio; ou talvez fosse eu o campónio aos olhos dele. Era inevitável inquiri-lo:
Não entendo uma coisa. Explique-me como se eu fosse um campónio: não esteve no local do crime e não viu o corpo; então, como sabe quem foi o assassino?
Ouviu-me dizer isso? desafiou-me, arrogante.
De facto, não ouvi. Mas não foi você que ligou para a GNR de Mira? É que o inspetor Gaspar já sabe quem matou quem.
Eu não disse isso redarguiu com um tom sobranceiro. Eu disse que estava desconfiado do filho do Manel Sorna. É muito diferente, não acha?
Acho que me deve explicar essa desconfiança.
E desenrolou a teoria da pobreza que instiga o instinto à prática do crime para alcançar a riqueza fácil. A mala verde do ourives cheia de ouro era a esperança de uma vida farta.
Começava a sentir-me desiludido com o chefe. E era tempo perdido continuar a inquirição. Era poço sem água. Olhei o relógio. Ainda tinha tempo de dar um salto ao poço grande antes do almoço. Talvez uma barrigada de fome até à chegada do chefe. Pedi ao aristocrata emproado que me arranjasse umas galochas, por amor aos sapatos que eu calçava. E pedi-lhe, também, em tom imperativo, que me acompanhasse ao local do crime. Pareceu satisfeito com a minha decisão, pois declarou que tinha muita curiosidade em saber como se investiga um crime.
Não chovia, felizmente, e o vento frio reduzira-se a um sopro cansado. Percorri caminhos vicinais, carreiros de cabras e de burricos. Alexandre gabava-se de pertencerem todas essas terras em redor à quinta da Murteira.
A terra e tudo o que nela mexe, desde os bichinhos às pessoas acrescentou, inchado de fidalguia.
Absorvi a imagem agreste dos campos de cultivo, terrenos afogados e outros em pousio invernoso. E espantei-me com a corajosa tenacidade de humildes camponeses teimando em arrancar da terra o milagre do sustento. Vidas secas encharcadas no chão da fome. E chegou-me à memória a abertura do romance Casa na Duna: «Na gândara há aldeolas ermas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo. Nelas vivem homens semeando e colhendo, quando o estio poupa as espigas e o inverno não desaba em chuva e lama. Porque então são ramagens torcidas, barrancos, solidão, naquelas terras pobres.» Saberia o inspetor Gaspar que eu já tinha lido este romance de Carlos de Oliveira? E se esta era a realidade do chão português, exposto aos olhos do mundo, que crime político cometia a literatura que nesta paisagem física e humana se inspirava? Porquê tanto medo da arte? Respostas que a minha idade e a minha experiência de vida ainda não alcançavam, apesar de ser um estagiário da PIC.
Chegámos ao poço grande, imponente com a nora ao centro, mergulhada no espelho de água que transbordava. Cumprimentei o agente da GNR e o camponês, enquanto o Alexandre, ignorando-os, se debruçou sobre uma capa de oleado e destapou o cadáver. Uma papa de sangue alastrava, mais coalhada no rombo visível no parietal direito, sinal da forte pancada de que fora vítima. O infeliz estava morto e limpo de vestígios forenses, já não tinha qualquer utilidade para a investigação. Disse ao GNR para diligenciar a remoção do cadáver. Nesta altura, o neto do barão da Murteira, apontando um casebre à distância de uns seiscentos metros, informou-me de que era a habitação dos Sorna. Perguntou ao caseiro, o homem que fizera companhia ao agente, se tinha visto o Arménio Sorna. Resposta negativa. E logo me sugeriu uma visita a essa gente; de certeza que uma busca aturada, mesmo sendo como agulha em palheiro, seria bem-sucedida com a descoberta de uma prova irrefutável. E eu teria ainda a possibilidade de espremer a verdade ao Arménio Sorna com uns açoites bem dados.
Sem comentários, fingindo não o ter ouvido, encaminhei-me para o casebre, com eles a seguir-me como dois cães rafeiros. O casebre era a expressão da mais extrema pobreza: adobos em cima de adobos a segurarem uma porta e uma janela. A habitação prolongava-se por um alpendre e por currais. Bati à porta. Uma, duas vezes. Abriu-se devagar, a medo, e uma moça assomou à minha frente. Tive dificuldade em ocultar o meu espanto. Sem palavras, extasiava-me a olhar a figura grácil que me enchia os olhos. A indumentária era simples e asseada; mas o verdadeiro encanto era a elegância corporal e o rosto trigueiro, no qual resplandecia uma beleza indizível que eu nunca vira na minha vida. Uma beleza que se mantinha intacta apesar das lágrimas que lhe escorriam pelas faces. Associei o choro ao ourives louro, jovem como ela, e depressa concluí que junto ao poço jazia o amor da sua vida. Apresentei-me e pedi educadamente para fazer umas buscas, depois de ela ter dito que os pais andavam a trabalhar no campo e que o irmão tinha ido a Febres, de bicicleta, dar a triste notícia aos familiares do seu namorado.
Vasculhei o interior da pobre habitação enquanto os outros, como furões, se infiltraram nos anexos. Nada descobri. Entabulei conversa com a moça, Olinda de sua graça. De queixume em queixume, de lágrima em lágrima, lamentou o azar do namorado, ourives de Febres, ambulante no negócio de compra e venda de ouro; e também o seu azar, que dele só lhe restava o anel que tinha no dedo, prenda do último aniversário. E que não pensasse ele que ia ceder aos seus desejos; nem morta! Nesta passagem, fiquei com o pensamento baralhado. O que Olinda afirmava não fazia qualquer sentido. Como poderia ceder ao desejo de um cadáver? Teria ficado tresloucada com o desgosto?
Nunca serei do Alexandre, nem coberto com todo o ouro do mundo!
Terminou a frase no instante em que o aristocrata chegava até nós, eufórico, sorridente, com uma mala verde nas mãos.
Aqui está a prova! E ofereceu-me a mala como se fosse um troféu de caça.
Coloquei-a em cima de uma cadeira, levantei a tampa e examinei minuciosamente o interior vazio e amplo, cujos cartões haviam desaparecido, assim como todas as peças de ouro e prata: anéis, pulseiras, alianças, fios, correntes, relógios. Verifiquei que a mala era feita de folha-de-flandres. E descobri, pormenor importantíssimo, uma pequena mancha de sangue a macular o lastro. Meti o nariz no fundo da mala e cheirei a nódoa: sangue fresco.
Então, precisa de mais provas?
Não, isto é tudo o que preciso. Vamos embora. Está na hora do almoço.
Fizemos o caminho de volta à quinta. Quando passámos pelo poço grande, já não havia cadáver; apenas um chapéu, sujo de lama, esquecido no chão, e a bicicleta do ourives tombada. Alexandre mostrou-se muito solícito. No solar, depois de eu calçar os sapatos, quis que o acompanhasse à mesa. Recusei. Fui direto à taberna, onde me consolei com uns carapaus em molho escabeche, broa de milho e um pichel de tinto. No fim, pedi à velhota que me fizesse uma chávena de café bem quente. Entretanto, fui ordenando as ideias. Queria estar preparado quando o inspetor Gaspar chegasse de Aveiro. Estava ansioso, mas tive de esperar mais duas horas, que preenchi com passeios pelas redondezas, enchendo os olhos com a paisagem gandaresa.
Eram quatro horas da tarde quando ouvi o roncar do carocha.
Então, menino, deste conta do recado?
Na viagem de regresso a Coimbra, apresentei-lhe o meu relatório oral e o caso resolvido.
A pancada foi no parietal direito, dada por um canhoto. Alexandre é canhoto, tive a oportunidade de o confirmar: segura a cigarrilha com a mão esquerda. A análise ao sangue vai comprovar que o assassino é o neto do barão da Murteira. Matou o ourives por ciúmes, para se apoderar da pobre moça, sabe-se lá com que fins, que tem uma beleza que seduz um santo.
O meu chefe coçou a cabeça. Comentou que estava um tempo de caca, mas desta vez não abriu a botija de gás. Isto motivou-me para continuar com as minhas reflexões.
Já viu, chefe, do que estes fidalgotes rurais são capazes? Até parece que estamos na Idade Média. Que nojo!
Acendeu um cigarro, expeliu o fumo demoradamente e opinou:
Andas a ler muito, menino. Os romances vão ser a tua perdição. Vais ter uma vida de caca.

 *
O inspetor Gaspar, instado por mim acerca do resultado da análise ao sangue, adiava sempre uma resposta esclarecedora e convincente. Pedia-me que esquecesse o caso, que me concentrasse na conclusão do estágio, pois já tinha a prova real da minha competência. Ameacei-o com a desistência do curso se o culpado não fosse incriminado. Chegou-se a mim, paternalmente, pôs o braço pesado sobre o meu ombro, e cochichou no meu ouvido:
Rapaz, nesta vida, as coisas nem sempre podem ser como a gente quer. Esquece o assunto. O caso vai ser arquivado por falta de provas. Ninguém será condenado. Amanhã, a vida será a vida que sempre foi naquela terra.
Não concluí o estágio para agente da Polícia de Investigação Criminal, que meses depois passou a designar-se por Polícia Judiciária. Não queria ser um polícia de caca. Arranjei emprego como escriturário, dediquei-me à leitura de romances perigosos e acabei por casar com a Olinda.
 
Conto vencedor do Prémio Literário Idalécio Cação/2012, S. Caetano, Cantanhede.
Incluído na coletânea de contos selecionados do mesmo prémio, com o título Palavras na Areia.
 
 
 

O RETRATO À JANELA


Foi ontem, meu filho, ao limpar o pó da estante do teu quarto, que senti a fragrância de cravos. Abri a janela e espreitei as rosas e os cravos que não existem no exterior. De súbito, como emergida da escuridão, lembrei-me de que abril estava quase na voragem do tempo. Tenho andado muito esquecida ultimamente. É o porta-chaves que ficou na mercearia, a carta com o cheque na prateleira, o programa de televisão que não vi por ter adormecido no sofá, enfim, tantas coisas miudinhas que preenchem a vida de uma pessoa. Mas esquecer completamente que este é o mês de Abril, ai, isto é que me faz doer bem fundo! Desculpa, meu filho, sabes que não é por mal. É esta inexorável velhice que começa a atraiçoar-me. Ainda agora, olhando-me no espelho, mais não vejo do que uma moribunda de cabelos brancos à espera da viagem final. Todos, todos partiram já desta casa; só resto eu, para cumprir, à minha maneira, o destino que não coube em vós.
Inspirei o aroma das flores que pairava no ar e sorri para ti. Obrigada, meu filho, por esta forma tão subtil de comunicares comigo. Larguei o pano do pó, fiz-te uma carícia no cabelo, aproximei o meu rosto do teu e vi que os teus olhos não tinham perdido ainda a esperança. Não resisti a beijá-los com ternura. Prometo, meu filho, que amanhã estarás à janela, como habitualmente acontece há dezanove anos.
No momento em que sobre ti me inclinava, os olhos de teu avô e de teu pai rogaram-me um pouco de atenção. Reclamaram que também eles mereciam, por direito próprio, figurar no parapeito da janela. Ai esta velhice que tudo me faz esquecer! E esta vista tão cansada que me não deixa perceber a coloração esverdeada dos vossos olhos. É o fim, de certeza; mas prometo, fiquem descansados, que amanhã estarão à janela aberta para a rua.
E nesta noite sem sono, aguardando ansiosamente a manhã, quero conversar um pouco convosco, antes que a memória se apague por completo. Talvez seja a última conversa nesta casa. Pai, fala-me de ti, diz-me a cor verde que trazes nos olhos.
Minha filha, falar de mim é contar-te um sonho breve, um sonho que se dissipou com o nascer do dia.
Era uma madrugada de janeiro de 1891, a última do mês. Acordara incomodado pelos rumores que iam crescendo nas ruas enevoadas do Porto. Abri a janela e sons revolucionários d’A Portuguesa ecoaram dentro de mim. Ao longe, a multidão subia a rua gesticulando vivas à República. Vesti-me à pressa, avisei a tua mãe dos meus intentos, e despedi-me de ti com um beijo. Dormias serenamente com a inocência dos teus tenros meses de idade.
O teu beijo, pai, ainda o sinto sobre mim como o peso gélido do mármore. O teu beijo, pai, foi a despedida que nunca mais me largou até hoje.
Há forças, minha filha, que nos fazem partir à procura de algo indizível. Há forças, minha filha, que nos fazem acreditar que vale a pena oferecer a vida pela conquista de um ideal.
Desci então à rua e juntei-me aos manifestantes civis que acompanhavam o batalhão de Caçadores 9 e a Infantaria 10. Lembro-me de que segui entre o ator Miguel Verdial e o jornalista João Chagas. Das janelas recebíamos expressivos apoios que nos enchiam de confiança e entusiasmo. Chegámos à Câmara Municipal e hasteámos a bandeira vermelha do Centro Democrático Federal. Eram sete horas da manhã, anunciadas por um sino não muito distante. Da janela da Câmara o Dr. Alves da Veiga proferiu um discurso e, logo depois, foram nomeados os membros do Governo Provisório. A República era nossa! Dirigimo-nos à Praça da Batalha, e logo os acordes de A Portuguesa se calaram. Para nosso espanto, a Guarda Municipal esperava-nos de armas em riste. As primeiras descargas caíram sobre nós. A nossa resposta foi imediata. Lutámos com coragem e bravura. Os corpos dos companheiros que iam tombando a nosso lado incitavam-nos ainda mais.
Minha filha, é chegado o instante em que uma bala vem ao meu encontro. Diz-me o epílogo deste episódio, porque é aqui que deixo de ser personagem.
E eu te digo, pai, que o final é triste e desolador. Do número de mortos sabes tu, nem vale a pena falar. Quanto aos vivos, foram julgados e condenados a bordo do vapor Moçambique, do Índia e da corveta Bartolomeu Dias. Mas não desanimes, pai! Mesmo sendo herói apenas por uma manhã, a semente da República ficou lançada para germinar dezanove anos depois, em Lisboa. Lisboa! Dezanove anos! Que coincidência, meu filho! Faz precisamente amanhã dezanove anos que os cravos encheram a nossa rua pela primeira vez.
São vinte anos, mãe!
Ai a minha cabeça! Como o tempo passa! Que pena o teu pai não ter assistido! Sabes que conheci o teu pai no dia da implantação da República? Tinha eu 19 anos! Que coincidência: outra vez dezanove anos!
É verdade, querida! Tempos difíceis e conturbados, esses da Primeira República. Mas éramos felizes. Nada queríamos saber do mundo e da politiquice que grassava pela capital. Só o nosso amor interessava.
Acabaste por descobrir, meu querido, que a vida não era só o nosso amor, que há coisas fundamentais na vida muito mais fortes do que a união apaixonada entre dois seres humanos.
Sim, tens razão. Sabes que sempre admirei a tua capa- cidade de compreender e aceitar os outros?
Sabes quanto me custou essa resignação?
O mesmo preço do destino que escolhi.
E que preço! Só me ficaram os retratos para recordar. Mas continua. Continua, meu amor, a dizer-me a cor verde que te nasceu nos olhos.
Foi com a implantação do Estado Novo que despertei para a realidade. A princípio, ainda acreditei e defendi os seus propósitos. Pouco a pouco, fui descobrindo que há direitos fundamentais que não podem ser negados ao homem seja qual for a fundamentação ideológica.
E a história repete-se, meu querido, novamente na casa de meus pais.
Foi na madrugada de 3 de fevereiro de 1927. A revolução estalou por iniciativa do regimento de Caçadores 9, duma companhia de Infantaria 6 e de duas companhias da Guarda Nacional Republicana. Rapidamente aderiram à sublevação outras unidades militares provenientes de cidades próximas. Numerosos civis armados juntaram-se aos revoltosos.
Acordei sobressaltado com o tumulto que se aproximava da nossa porta. Espreitei pela janela e reconheci a figura do militar Jaime Cortesão. Saltei da cama e despedi-me de ti e do nosso filho com um beijo.
Desta vez, meu querido, não foi só um beijo que me ficou para recordação. A meu lado tinha um filho com um ano para seguir os vossos passos sem voz.
De surpresa, ocupámos rapidamente os edifícios do Quartel-General, do Governo Civil e dos Correios. Tudo estava a ser fácil. Talvez demasiado fácil. Digo-te sincera- mente que adivinhava a aparição das forças governamentais a qualquer momento. Assim aconteceu. Ficámos isolados na Praça da Batalha e duramente combatidos. Este Porto sempre predestinado a revoluções com sangue.
E eu sempre predestinada a sofrer em silêncio a perda dos meus entes queridos! Nem a Lisboa que mais tarde escolhi para viver me trouxe algum sossego.
Não chores, mãe! Tenho muito orgulho em ti e no pai, apesar de nunca o ter conhecido pessoalmente.
Tu conhecia-lo perfeitamente, meu filho! Ao escolheres o teu destino estavas a ser o teu pai. E o teu avô.
Quero falar da cor verde dos meus olhos, mãe.
Queremos. E é com bastante dor que o faço. A tua cor verde é muito mais intensa. A tua cor verde tem o tamanho da tua vida inteira: 48 anos!
A presença dos retratos de meu avô e de meu pai foi sempre um enigma para mim; até ao dia em que tu me explicaste o segredo da tonalidade verde que emergia dos seus olhos.
Estava escrito que tinha de ser assim, repito. Estava escrito que os únicos olhos negros seriam os meus, meu filho! Imolada pelo destino que vós escolhestes.
E eu, mãe? Uma vida inteira de celibato, sem usufruir da alegria de um lar.
A tua família era outra: a da luta clanc1estina.
A família do sofrimento. A família vivendo na sombra da perseguição. A família separada e flagelada em Caxias, em Peniche, no Tarrafal. A família fazendo da dor a força do sonho.
Sonho que acabou por florir. Por te ver feliz, foi o melhor instante da minha vida. Meu filho, fala-me desse dia.
Era Abril e não saía de nossa casa há dois dias, retido por uma gripe. As noites eram lentas e penosas, assombrado por fantasmas que me conheceram nas prisões. Valia-me a companhia da Rádio Renascença nestas noites de insónia e de febre.
Na madrugada do dia 25 de Abril escutei admirado a canção Grândola, Vila Morena, do meu amigo Zeca Afonso. Talvez devido ao estado febril, ou à circunstância descabida em que a canção foi transmitida, sonhei que ela era o anjo anunciador de uma nova era. A partir desse momento não mais desprendi os ouvidos do recetor. Ia à janela repetidamente e espreitava o edifício da PIDE no outro lado da rua. Recebia o seu silêncio pesado e seguro com bastante aborrecimento. Mãe, fugiste do Porto para escolheres uma casa na rua António Maria Cardoso!
Estava escrito, meu filho!
Sintonizava nervosamente todas as estações portuguesas e estrangeiras à procura da boa nova. Às quatro da madrugada o Rádio Clube Português difundiu a mensagem por que tanto ansiara. Não era explícito o teor, mas a canção de Zeca Afonso tinha-me dito tudo. Quis saltar para a rua e tu, mãe, aconselhaste-me a não o fazer. Temias a febre, o frio e o perigo no dobrar de cada esquina. Deixei-me ficar, cada vez mais agarrado ao aparelho. Finalmente, pelas sete da manhã, o RCP confirmava que a revolução era a flor que sempre habitara no meu peito. Ouço ainda nos meus ouvidos o comunicado transmitido nessa noite feita de suspense: «Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas. Conforme tem sido difundido, as Forças Armadas desencadearam na madrugada de hoje uma série de ações com vista à libertação do País do regime que há longo tempo o domina.» Não resisti a este apelo. Indiferente à doença e aos teus rogos, vesti-me e saí para a rua.
Quando saíste, meu filho, exalavas o perfume dos cravos.
Corri loucamente à procura dos soldados de Abril. Fora personagem principal na luta clandestina; agora, merecia ser figurante na revolução.
Eram dez horas quando senti um arrepio por todo o corpo. Mais do que a febre, era o temor de ver os cravos murcharem na Ribeira das Naus. Houve aqui um choque de forças opostas. Felizmente, resumiu-se a uma pequena escaramuça resolvida a nosso favor. Foi nesta altura que eu vi cravos a nascer nos olhos dos soldados e dos populares.
Depois avançámos para o Carmo cujo objetivo era conquistar o Quartel da GNR. O cerco prolongou-se devido à teimosia dos sitiados em oferecer resistência. Recordo que o capitão Salgueiro Maia soube agir com serenidade num ambiente fortemente marcado pela impaciência e nervosismo dos civis. Olhava-se em volta e a paisagem humana era feita de soldados e populares. Das janelas, as pessoas assistiam sem medo à revolução. Ao fim da tarde, após algumas rajadas de metralhadora, o Governo rendeu-se. Marcelo Caetano saiu do seu reduto. A população podia finalmente, e em liberdade, despejar sobre ele todo o ódio que acumulara durante 48 anos. A revolução estava ganha!
Avançámos depois para a rua António Maria Cardoso. Era preciso romper a última bolsa de resistência. A multidão, aprendendo já a força da palavra liberdade, gesticulava o V de vitória e exigia a rendição dos pides.
Olhei para a nossa casa e surpreendi-te à janela. Tão linda que te vi, mãe, nesse teu ar de flor rejuvenescic1a. Acenei-te e sorriste-me. Atirei-te um beijo e tu correspondeste com um cravo que voou da janela para mim. Fiquei à espera dele, preso à nossa alegria.
E ainda hoje lá estás à espera do cravo que não chegou às tuas mãos, meu filho! Nesse instante, recorda-me a c1or profunda, uma bala disparada do edifício da PIDE foi mais rápida do que o cravo.
O cravo não chegou às minhas mãos mas cobriu Portugal inteiro, minha mãe!
Sim, houve a febre dos cravos durante bastante tempo. Houve o 1° de Maio e outras manifestações cobertas de flores. Eu vinha à janela, nesses anos de intensa comemoração, e recebia no rosto a fragrância de flores. Contente, pegava nos vossos retratos e punha-os à janela, a meu lado, porque a festa dos cravos era muito vossa.
Valeu a pena ter dado a minha vida por um cravo.
Vale sempre a pena lutarmos por aquilo em que acreditamos. Mas, não quero desiludir-te, olha que os cravos começam a murchar. Estão a perder a cor e o cheiro. Abre-se a janela e a rua aparece-nos triste e deserta. O ar que respiramos traz consigo o aroma do esquecimento e da indiferença. Hoje, as flores são outras. Fecho então a janela e fico absorta a olhar para os retratos.
Há que ter esperança, mãe!
Sim, meu filho, mas estou demasiado velha e cansada. Que esperança posso ter nesta idade centenária?
Mãe, sentes a fragrância de cravos que se liberta de mim?
Desde ontem, meu filho! Desde há vinte anos!
Mãe, promete-me uma coisa: enquanto viveres, coloca-me sempre à janela no dia 25 de abril. É preciso que a cidade capte o perfume dos cravos que se liberta do meu retrato. E, quem sabe, talvez um dia consiga apanhar a flor que ficou suspensa no ar à minha espera.
 
in A Ver Navios, 1994