O FOTÓGRAFO DA MADEIRA




As agruras de vida no século XIX na Madeira
João Abel de Freitas, Economista


Parte inferior do formulário
O Fotógrafo da Madeira de António Breda Carvalho é um grande livro, uma análise ampla e carregada de vida social, económica, política e religiosa do século XIX, com resquícios bem presentes ainda hoje, de que relevo sobretudo a intolerância.
Não pretendo ser um crítico literário, porque não sei. Mal distingo os géneros literários.
Então o que deixo aqui neste pequeno texto são impressões que colhi ao olhar para este livro e não análises de natureza estrutural ou comparativa, próprias do crítico.
O Fotógrafo da Madeira é um romance, assim o classifica o autor, “feito de ficção e de História” e acentua: “a ficção, pela sua própria natureza, dispensa qualquer aviso ao leitor. A História, por sua vez, entranha-se na ficção. Pertence à História o tempo, o espaço, alguns factos e algumas personagens. É aqui que entra o aviso ao leitor: não confundir personagens de papel com personagens reais.”
Apesar do aviso ao leitor para não confundir as personagens de papel com as reais, a História a sério da Madeira do século XIX, nos seus múltiplos desenvolvimentos, perpassa todo o romance e está bem entranhada no seu enredo, bem atractivo.
Uma História contada de forma aliciante que nos entusiasma. Bem mais rica e abrangente do que em qualquer compêndio. As personagens que a fazem desempenham papéis múltiplos na vida do dia-a-dia.
Assim se passa com a personagem mais em foco no romance, Afonso Elias Ayres Drumond, o madeirense estrangeirado, saído da Madeira aos 12 anos para estudar em França, por vontade de seus pais que não pactuavam com a intolerância reinante no ambiente madeirense: “não o quero ajoelhado à política desta ilha”, dizia o seu pai no diálogo com a mãe quando discutiram a ida do filho para fora da Ilha, reagindo assim ao ambiente antiliberal vigente e acerrimamente hostil às ideias que professavam. Eram marginalizados, só não o eram mais, por serem um casal de posses. Tinham a Quinta da Colina, de grande sucesso nos negócios do vinho Madeira.
Este madeirense, depois de uma vivência parisiense, permissiva e tolerante e com já algum nome na advocacia local, regressa aos vinte e poucos anos para gerir a Quinta da Colina. Regressa como cônsul francês para a Madeira, e com hobbies pouco habituais para a Ilha. É amante da fotografia (algo de novo na Madeira) e da pintura.
Depois de montar o consulado nele admitindo como sua secretária, a Laura, filha do encarregado da Quinta da Colina, o que choca a sociedade local (mulher num emprego de homem, mulher no emprego a sós com um homem), logo aqui não escapa a aleivosias num jornal do Funchal, o que leva Laura a abandonar o cargo por vontade própria. Mas Laura não fora admitida por favor. Tinha competência para o desempenho das funções. Tratava-se da filha do encarregado mas bem preparada. Tinha sido educada pela mãe de Afonso, deduz-se educada como se fosse sua filha. Expressou nela a ausência do filho.
Afonso Elias era uma pessoa dinâmica. Ao sair Laura do seu alcance e por não a querer perder, constitui a primeira casa de bordados virada para os mercados externos e entrega-lhe a gestão deste investimento inovador.
Mas Afonso Elias não fica quieto. Desenvolve outras iniciativas de carácter social e de promoção da Ilha. Entre elas a iniciativa dos postais sobre as belezas e actividades da Madeira, a partir da sua arte fotográfica de onde retira dividendos, aplicando-os nas iniciativas sociais.
Esta dinâmica desagrada às forças vivas da Terra. São ideias revolucionárias como insinuam. São influências de França, despropositadas no meio madeirense. Aliás, o cônsul pelo passado de seus pais é, desde o início, uma pessoa non grata, apenas tolerada.
É interessante como o livro se vai desenrolando. Para além de diversos ingredientes fortes do romance que envolvem a comunidade inglesa e o seu fechamento, o romance vai tocando todos os pontos importantes da sociedade madeirense.
É a economia onde o vinho e os bordados são tratados por contraste ao que predomina. Chegam elementos inovadores de mercado e produção. São as relações sociais de produção sobretudo no campo onde se contrasta a grande questão da colonia com as relações vigentes na Quinta da Colina, onde os pais do cônsul tinham dando um passo em frente com o estabelecimento das relações capitalistas - trabalhadores assalariados com vencimento fixo. É a emigração sobretudo para Demerara, a nova escravatura branca com os engajadores a ganharem fortunas. É o turismo onde os hotéis da cidade começam a surgir e onde se vinca a vontade de investimento no sector.
As forças vivas, “os políticos”, governador, presidente de câmara, bispo, apontam-lhe essas ideias de revolução, aliás insinuando que “quem sai aos seus não degenera”.
Mas o grande problema surge com a igreja, ou melhor com o entendimento (igreja-políticos) na perseguição a Robert Kalley, radicado na Madeira há alguns anos e defensor do calvanismo. É o cúmulo da intolerância e da malvadez.
Afonso Elias, que não praticava nenhuma religião, era tolerante com os seguidores de Kalley, até porque os pais de Laura e a própria Laura eram praticantes.
Havia arruaceiros comandados por um tal Cónego Teles de Menezes que “com o apoio tácito do governador” faziam batidas “a lugares reconhecidos como covil de protestantes” e os que não conseguiam fugir “eram espancados e apedrejados”.
Estes arruaceiros até cercaram a casa de uma súbdita inglesa não anglicana adepta de Kalley numa tarde em que um grupo, na maioria mulheres, estava reunido em oração. A súbdita apresentou queixa ao cônsul inglês que para não desagradar ao governador e à igreja madeirense nada fez.
A provocação desenvolve-se em crescendo até que chega o dia de São Bartolomeu madeirense, onde todas as arruaças foram cometidas, designadamente a invasão do Funchal com o ataque e uma grande mortandade de pessoas.
Muita gente conseguiu fugir da Madeira entre eles o pastor Kalley e Laura.
Afonso Elias não assistiu a esta tragédia pois tinha sido chamado a Lisboa pelo governo.




























 Foi este o livro que li, nas minhas mini-férias em Föhr, o tal romance sobre uma ilha, da autoria de António Breda Carvalho, lido numa ilha. Como o título indica, fala-nos de um fotógrafo, mas numa altura em que um fotógrafo constituía novidade e em que uma fotografia demorava cerca de quinze minutos a ser tirada com um calótipo.

Em meados do século XIX, Afonso Elias Ayres de Drumond, um advogado de Paris apaixonado por fotografia, regressa à sua Madeira natal, depois de vinte anos de ausência, a fim de tomar conta da quinta da família e de exercer funções como cônsul de França.Vai-se apercebendo das dificuldades dos madeirenses, da sua pobreza e de como os recursos da ilha estão mal aproveitados.

Como cônsul, trava conhecimento com os membros do governo regional e a elite da ilha e tenciona aproveitar a sua posição para tentar mudanças, até porque a população local emigra em massa, o que suscita uma interessante observação do autor: «os madeirenses esvaziavam a ilha fugindo da miséria e os turistas enchiam-na em busca de divertimento e saúde».

O seu intrometimento nos assuntos locais é, porém, muito mal recebido. António Breda Carvalho explora muito bem a mesquinhês, a ignorância e o fundamentalismo de autoridades acomodadas nas suas poltronas, tudo se passando debaixo da capa de cenário paradisíaco. Afonso Elias chega a afirmar: «Esta ilha é exteriormente bela e sorridente, mas moralmente desolada e fria».

A situação atinge contornos absurdos com uma total intolerância religiosa em relação a um pastor presbiteriano escocês, Robert Reid Kalley. As numerosas adesões à Igreja Presbitariana desestabilizam séculos de hegemonia católica e gere-se um clima de autêntica guerra civil, que culmina em muitas mortes e na expulsão de quase dois milhares de madeirenses.

Foi, para mim, muito interessante ler sobre este momento da história da Madeira, que desconhecia completamente. O livro lê-se bem, a escrita de António Breda Carvalho é fluida e clara, com uma certa atmosfera queirosiana aqui e ali. E, apesar de a ação se passar no século XIX, o tema é atual, basta pensar nas características dos nossos políticos e na emigração em massa que se verifica no nosso país.

Nota: este romance, publicado pela Oficina do Livro em 2012, foi o vencedor do Prémio Literário João Gaspar Simões, em 2010.

Cristina Torrão, in Andanças Medievais

______________________________________________________________

«(…) Ora é precisamente a este propósito de morgados e morgadios que não pretendo deixar passar em claro o livro que dá título à minha croniqueta de hoje. O volume descansada há algum tempo na mesa simples das leituras não feitas e foi precisamente esta semana que chegou a sua vez. (…) trata-se dum livro dum escritor mealhadense, António Breda Carvalho, uma raridade portanto no nosso panorama literário, daí a razão de o registar nestas despretensiosas crónicas, ditas locais.
Li e gostei e como em minha opinião é uma obra que dignifica o município através do autor, não quero deixar de o sublinhar. Trata-se de um livro sério e honrado, bem escrito, bem urdido, bem estruturado, e que destoa para muito melhor de boa parte da produção que anda por aí ajudada por dinheiros públicos e empurrada por organismos nacionais que lhes dão base e amplitude.
Não sei que apoios teve esta obra premiada, se é que os teve, perdão pela minha ignorância, mas em termos locais não me lembro de ter visto uma referência, um aplauso, uma distinção do poder instituído, naturalmente muito mais interessado em carnavais, futebóis, maravilhas ou fundações, fenómenos que lhe dão presumidamente mais votos que um simples livro de duzentas e muitas páginas que, embora muito bem escrito e bem contado, não dá votos a ninguém, apesar de inscrever o concelho da Mealhada num concerto maior dos nossos criadores atuais. Além de retratar, e vem daí a sua actualidade, esse mundo de compadres e morgadios que fazem de Portugal e da Madeira aquilo que o português continua a ser nos nossos dias. Nem o “milagre” da Europa conseguiu atenuar os prodígios dessa escravatura física e mental.
Em minha opinião, fica mal não ler o livro de um mealhadense, claro! Deixo o recado com parabéns ao autor, que bem os merece por este Fotógrafo da Madeira.»

Luso, Abril, 2013

______________________________________________________________________


Domingo, 9 de Dezembro de 2012

Ao Domingo com... António Breda Carvalho

O único livro que havia em casa dos meus pais era uma tia muito velhota que nos fazia companhia todas as noites. Ela sentava-me no seu regaço, e eu, menino de cinco anos, ouvia as histórias maravilhosas que nunca me cansavam, apesar de serem sempre as mesmas.

Creio que vem do fundo desse tempo a génese da minha relação com a literatura. Mais tarde, príncipe do império do alfabeto, troquei a tia pelos livros. E com eles fui crescendo, visitante assíduo da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian. E um dia descobri que da minha imaginação brotavam ideias que eu era capaz de transformar em histórias escritas.


Nos caminhos da vida me fui achando e perdendo. Eu era aquele que adorava ter um livro para ler e não o fazer, sem querer imitar Fernando Pessoa. Adorava imaginar histórias, escrevê-las na cabeça e não perder tempo a passá-las para o papel. Como um amante infiel, abandonava os livros e a escrita, e refugiava-me em outras aventuras. Depois acabava por regressar à literatura, e com ela tinha uma relação amorosa intensa. Era muito feliz… até me cansar.


Em tempo de reconciliação com a literatura, quando me vinha a vontade de lançar ao papel a semente da escrita, os prémios literários nasciam tão naturalmente como os frutos da árvore. Eu semeava um conto e nascia um prémio. Contudo, olhando de frente a vida, eu não via um pomar, mas um piano, cujas teclas eram passatempos que seduziam os meus dedos. E nelas me perdia: dó-ré-mi… E por elas fui perdendo a literatura, insensível aos apelos que me fazia em horas de introspeção. E querendo ser uma coisa, perdia-me em outras coisas.



Há dois anos, saturado de tantos caminhos poeirentos e sem destino, reencontrei-me com a literatura. Abracei-a e nunca mais a larguei. Hoje é a minha amante eterna. Para esta viragem de 180 graus, foi decisivo o Prémio Literário João Gaspar Simões, que alcancei em 2010 com o romance O Fotógrafo da Madeira. Cada conto e cada romance são atos de amor que me saciam. Eu já não consigo viver sem esta cumplicidade. Eu estou dependente da literatura como um fumador viciado na nicotina. Faltando-me a escrita e a leitura, a ressaca destrói-me. Escrever é um labor que exige paciência e perseverança, mas que me realiza completamente, porque quando escrevo aconteço. Construir mundos faz-me sentir um deus que não quer descansar ao sétimo dia. Finalmente, tornei-me fiel na minha relação com a literatura. Finalmente, posso afirmar: «Ai que prazer ter um livro para ler! Ai que prazer ter um romance para escrever!»

Eu não busco fama nem glória. Eu apenas quero escrever. Eu apenas quero ser eu. Alguém que escreve contos e romances como uma árvore dá frutos. E assim cumpro a minha condição humana.

 ____________________________________________________________________

TEXTO (ADAPTADO) DE APRESENTAÇÃO DO ROMANCE,
NO DIA 22 DE NOVEMBRO, NA ESCOLA BÁSICA Nº 2 DA MEALHADA


Mas quem é este autor? Já o conhecem.

Foi ele, António Breda Carvalho, que me deu a honra de criar estas vagas textuais de apresentação do seu romance, que não é o primeiro em sua lavra.

É costume, nas suas obras, dar a cara, a um certo nível revelar-se, de uma certa forma expor visões de mundos, ideias, até de conceção literária. Das obras que já li do autor, de pequenos a mais espraiados textos, ABC sempre mostrou propensão para as viagens no tempo, interrogações diversas ou de figuras individuais ou de formas colectivas, poisados em lugares sociais, políticos, regionais, intelectuais, religiosos, familiares e outros, enfim, de um Portugal cheio e particular.

Eis mais uma contenda, de pesquisa histórica, de investigação minuciosa, de pessoas, lugares, nomes, datas, transportes, casas, mares e naufrágios, barcos e terras, flores e cheiros, jornais e notícias, luzes e escuridão, cheias e mortes, sons e imagens da ilha e da não ilha.

A sua imaginação ficcional não teve parança, e complementou, desanuviando, a necessária apologia da verdade histórica, que por vezes condiciona e constrange os autores.

Na ausência de censura própria, na libertina entrega aos afazeres de escrita doméstica, na escrita de O Fotógrafo da Madeira, o autor é volante num vai e vem de vagas insulares entre factos e devaneios. Estamos na história e vivemos um romance, contado com afetos e reflexões por um narrador, onde personagens se apresentam com toda a dimensão humana, própria do século das transformações, o século XIX. Há sensualidade, há sabores, há sentidos, uns mais consentidos do que outros, tudo em evocação descritiva, senão a pormenor, quase à míngua.

“O Fotógrafo” apareceu, assim, na mesa-de-cabeceira, de forma clássica. Letra miúda, em maço de folhas, um volume e tanto, espesso. Já premiado. Caminhou nas primeiras lidas pelas vagas do Realismo. Em algum levantamento de mar o vapor da minha leitura era salpicado por um romantismo salgado. Por ali entrei de golfes. Naveguei submerso num faz de conta, num passado que se tornou presente, numa realidade ficcionada, onde mínimos abusos históricos serviram como sinais de recobro de atenção, - olha que isto é um romance…! - e aí me tornei atlântico, também habitante de uma ilha, durante vários dias.

É um romance de personagem, está claro. Da importância que tem o que pensa, e faz, ou do que leva a que pensem e façam, para além do nada que possa acontecer. Somos, todos nós, responsáveis pelo que se passa à nossa volta. Pelo que fazemos, pelo que não fazemos, e pelo que deixamos que se faça ou não.

Que história, ou histórias, se propõe contar?

De uma personagem, Afonso Elias Ayres Drumond, foco do narrador, das suas experiências objetivas e subjetivas, à volta de necessidades, carências, falhas e suas consequências; histórias de uma cidade, Funchal; de uma ilha, Madeira; de uma época, a metade do século XIX e suas circunstâncias.

Já estive na Madeira, em breve passagem de trabalho, mas aquela que me foi dada viver nesta ficção está plantada, claramente, e até por vezes explicada, à laia de um contabilista, em sapatas históricas, seguras, e levemente cinemáticas. A contextualização social permite fazer viajar o protagonista para o exterior e reconhecer aí as verdades necessárias e suficientes para um relacionamento do seu ser com os outros, ora no espaço, meio social, ora no tempo, época em que vive.

É aqui, na relação entre o indivíduo e a sociedade que surge a aflição dramática.

Alguém regressa à ilha da Madeira vinte anos depois, e querendo conhecê-la e transformá-la, vê-se a braços com o jogo das impotências. Será que o consegue?

Ao tentar, ele faz parte de atmosferas, emotivas umas, psicológicas, frias e mecânicas, outras, sociológicas. Torna-se eternamente responsável por tudo o que cativa a partir daí.

Há também um certo nível mítico abordado neste catálogo de imagens. Capaz de mudar o individuo, mas mais pérfido por se instalar nos inconscientes coletivos. Aqui damos conta das revelações mutáveis à volta do destino humano, ou melhor, da jornada do ser humano. O ser humano, tal como o protagonista, passa pelo mundo, em corredores que se abrem, possíveis, mas manipuladores. O lado oculto quando se revela tem tendência para se tornar mais desfavorável à condição humana, e serve sempre de ligação entre personagens, do indivíduo à sociedade e desta ao nível geral da existência humana. Assim é neste romance.

Um romance tradicional, de drama social. De relações humanas, físicas e de mentalidades.

Não é uma história passiva, é implicativa, é acima de tudo reflexiva ao ponto de ter laivos de actualidade.

Com algum tempo de exposição, como se de um trabalho fotográfico de revelação se tratasse, entramos no enredo.

Ao narrador-guia damos as mãos, e pelas insinuações das personagens, pelas referências soltas de lugares, de ambientes sépia desenhando a ilha, o Funchal, as gentes, as colinas sociais, as ruas íntimas, a ética e a moral, a falta de ambas, amores e usos, e uma fortaleza a guardar o mar revolto, chegamos à ilha e aos ilhéus.

Na obra está assim inscrito um convite a uma estadia, não tanto para fins terapêuticos mas para um turismo de habitação, socialização, e descobrimento…

Visitamos várias crises conflituantes, da britanização da ilha, da exploração de seus recursos, nomeadamente do vinho, do abuso da massa operária, da gente simples, da religiosidade e da política, de seus poderes sempre despudorados, da pobreza de um povo e da sua emigração, de confronto de mentalidades, de uma cidade que é campo e tarda em ser cidade, de um mar sem porto de abrigo para receber dignamente um mundo que sabe que uma ilha flutua enquanto vive na ordem e no progresso. Fora disso ela afunda-se em conflitos internos, próprios de cada personagem, sépias ilustradas daquele e deste tempo.

Por outro lado, para além da condição de visitante, também experimentamos a arte da fotografia, e somos vagamente retratistas. Também tiramos retratos, a pessoas, a lugares e a um tempo. Com um aspecto macio e rico, com linhas indefinidas, com detalhes apagados e enevoados, a ficarem pendurados na curiosidade do leitor, os calótipos da ilha lembravam os desenhos artísticos do protagonista, à espera de serem vislumbrados de perto.

E quanto à estrutura, perguntais vós?

Aqui falaremos de enredo. Sequência temporal de eventos e de interacções entre personagens.

A estrutura narrativa coloca-nos perante a ideia da jornada do herói.

A ligação do protagonista ao ambiente geral, da ilha, permite uma situação dramática dinâmica, em primeiros momentos vagarosa para depois, de forma mais eficaz, abrir-se a alternativas mais cadenciadas de revelação dos acontecimentos. Mas estamos na época do vapor, das carroças a cavalo, das corsas, na ilha, puxadas a bois. O andamento da narrativa é compatível com esta existência social e evolutiva do mundo.

O romance tem implícita uma construção estruturada de guia turístico, indelével, mas ativa, com um cicerone, o narrador, cheio de memória, de omnisciência, e com uma vontade enorme de contar o que sabe. Abre caminho à cumplicidade com o seu autor, para uma fluência narrativa prolixa, de palavras muitas, próprio de António Breda Carvalho, quem o conhece de outros textos que o compre, narrativa onde não lhe faltam vocábulos precisos, frases pujantes, indícios de acontecimentos, reflexões de salvados…

O Romance, onde a narrativa pauteia o perfil das personagens, o cenário dos lugares, o relógio do tempo, e a acção comedida dos momentos, está nas mãos do poder de quem conta. E ABC sabe contar.

E se a importância deve estar no como as coisas acontecem, para pensarmos nos porquês e nos para quês, é pelo narrador que, dominando a sapiência, acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos e é pela sua bitola que somos esclarecidos. Ele é o autor do postal ilustrado dos entrechos «bordados a ouropel», palavras do autor.

A velocidade do contar, pois é um romance claramente narrativo, dá-nos o tempo para a leitura.

E se falássemos dos diálogos, como são?

A ilha é uma redoma, criadora de virtudes mas também viciadora de desvios. As personagens assumem pelos diálogos o que é ou deixa de ser. Os diálogos são esclarecedores, e ativos, não fortuitos e menos ainda fúteis. Precisam-se.

Algo maquiavélica, a ilha revela-se, aos atropelos, de um não olhes para o que eu digo e sim para o que eu faço, porque somos seres moldáveis, no raciocínio, e pelos aromas tentadores dos sentidos.

As personagens são o que fazem mais do que o que dizem. Torna-se portanto também, um romance de acção. Melhor, de acções. De causas e consequências, mais desta última do que da primeira, pois são por vezes as palavras mais causadoras de acções futuras do que as próprias ações.

E já agora, sobre a arte e a técnica, o que dizer?

Que princípios e regras estão aqui a defender a marca de água artística de ABC?

Provavelmente o que gosta, o que lhe toca, o que aprecia, aprova como leitor, trans-sua para o seu texto como criador. A qualidade literária bebe-se na leitura de uma obra de forma sôfrega, ou de outra maneira, aos goles, pausados, sem soluços.

Entramos nesta diegese, por vezes em frases longas de tirar a respiração. Outras vezes, fazemos parte dela no mais simples narrar dos acontecimentos. Momentos houve em que me deitei com as palavras nos diálogos e apartes textuais, a fecharem-me os olhos da reflexão. Não foi fácil, admito, e desconcertante foi, porque exigente de atenção. Há parágrafos e parágrafos…

A narrativa, pausada, desbasta lentamente o tempo, o espaço, e a própria acção da história. Num tempo de gestação, nove meses, acompanhamos o feto madeirense das intrigas até ao parto final.

O autor consegue, e mérito lhe seja outorgado, mostrar para além de dizer, que à força do exercício das pulsões culturais, políticas, religiosas e individuais, do século XIX, o Funchal, enfim, a ilha, determinam, o que são, apesar de poderem ou deverem ser outra coisa, mais que não seja na opinião liberal da personagem de Afonso Drumond.

A ilha é um estado dentro de outro estado, do estado anímico e pensador dos seus habitantes.

Temos uma leitura demorada, numa cadência rítmica de quem tem tempo para esperar, mas corrida, em fio de água, para recebermos a revelação, em nove meses, de um retrato de uma sociedade, à luz de olhos abertos, talvez demasiado abertos, pois colhem pólenes e areias que os ares atlânticos fazem esvoaçar. E tudo muda porque muda o ser humano.

Num esfregar de olhos querendo clarificar, deixamos de ver muita coisa que entretanto acontece.

Preciso é estar atento à leitura. Não se lê tudo de uma vez. Há águas mais profundas debaixo das palavras.

A linguagem assim o descreve. Bom gosto e bom senso na escolha dos termos, julgo eu. O que é sintomático está à flor da pele, o que é implícito veste-se de uma certa armadura, o que não tem que ser evidente, o estilo cobriu para mais tarde explodir.

Não parece ficar nada pendurado, senão o que lhe é próprio, uma qualquer cartola que não serve à narrativa senão de esplendor. Pura decoração.

Não se incomodam, nem a ficção nem a história, a cansar o leitor. Antes, porém, se encontram a ladear a narração, como se de uma moldura se tratasse, e puxam, paulatinamente, para dentro da ilha. Para dentro do entendimento, da alegação de significados e justificação de escolhas.

O enredo, de uma leveza profunda, porque toca suavemente, o viver de todos, toca, no entanto, vincadamente a cultura, os hábitos, os costumes, a religião, a luta ideológica de seu tempo, de liberais e absolutistas, enfim, a sociedade atlântica da ilha da Madeira da primeira metade do século XIX.

Entendem-se gestos, compreendem-se as palavras, vislumbram-se os jogos de bastidores ou de cama, retratos da cidade do Funchal que nos projectam para aquele século.

O romance é um registo histórico bem contado, uma colecção de imagens, calótipos, de uma realidade com nomes verdadeiros à mistura com os ficcionados que bem podiam ser verdadeiros, terem existido, dada a sua caracterização.

Não é uma obra intimista senão mais social, mas, provida sim, do que uma sociedade tem no seu íntimo. As personagens sabem-no e dizem-no, o protagonista e o narrador pensam nelas.

Este romance coloca o seu protagonista numa teia de reconhecimento, de uma nova vida com nova gente, de uma nova terra, vinte e poucos anos distanciada de memórias, de uma nova sociedade, distanciada da que Afonso Ayres tem de hábitos e costumes, mais a da sua reflexão e educação.

À medida que ele se vai revelando, revela-se também tudo à sua volta, num calótipo fotográfico, cujo processo primitivo faz obter gradualmente traços, e pontos, matizes sociopsicológicos de um tempo e de um espaço que é a Madeira desse tempo. Só a Madeira?

O quando, dá-se à saliência, pois é tempo, como um gancho que prende, o que vai acontecer e como.

Agarrados a uma certa viagem da reconstituição histórica, prendemos os dedos da leitura a ficções de uma ficção bem tramada. Mais uma vez, a deferência do autor à temática da fotografia, implica-se na construção do contar.

Muitos momentos de trechos que são lidos, parecem ser amostras das experiências de laboratório, à espera que os negativos revelem as imagens fotografadas, de que fazem parte, à mistura, as palavras, os períodos, parágrafos, linguísticas diversas, como líquidos e matérias necessários à revelação. Pois esse é o estilo. Se não foi intenção do autor, o acaso bateu-lhe à porta. E bem. Se pelo contrário, pensou em tentar fazê-lo, o acaso bateu-lhe à porta da intenção, e parece-me que muito bem. Não há autores sem tentativa e erro. E este, tentou, cobriu erros e ganhou estilo.

Parece-me, em final de abundância, de boa índole, saudar o autor pelos anos de tentativa, e pelo prémio de ter suplantado os seus erros.

Eis uma obra de muitas, mas outra, e se fosse inimigo da sua pessoa, rogava-lhe uma praga:

Quantos mais anos de vida lhe restarem, mais obras deverá ver-se obrigado a cumprir.

Para amigos, conhecidos de longa data, o desejo de bom sucesso, pois muitas são as vezes, que para tal existir, vastos são os amargos de boca, e sonos mal adormecidos.

João de Oliveira

(Supressão e adaptação do texto de apresentação do romance O Fotógrafo da Madeira)


________________________________________________________________________ 

LEITURAS DA FERNANDA


“O Fotógrafo da Madeira” de António Breda Carvalho é um livro que não pode passar despercebido no círculo de leitores portugueses. Porque na verdade um bom livro é aquele que nos espevita a curiosidade, nos ensina e ao mesmo tempo nos conquista a alma. E esta foi realmente uma leitura que me conquistou em absoluto.
Apesar do aviso do autor no inicio, a realidade mistura-se com a ficção, e chegamos ao final com a esperança de que as personagens de papel tenham sido inspiradas em personagens reais. O percurso de Afonso Elias Ayres Drummond e a postura com que é apresentado não pode ser apenas fruto da imaginação. Uma personagem tão extraordinária deverá ter sido certamente inspirada em dois ou três personagens reais. Pessoas com ideais mais altos que lutaram em prole de um povo e influenciaram o modo de pensar de uma população. Quero acreditar nisso!
António Breda Carvalho faz parecer que escrever é simples. Cativa-nos com a sua forma de escrever e com a maneira como envolve o leitor. Julgo que a grande riqueza deste livro é mesmo essa, a facilidade com que entramos na história e naquela época. O autor entrelaça a história da Madeira com o desenrolar de um romance, à partida condenado pela diferença social.
Adorei cada pedacinho deste romance ao mesmo tempo que relembrava o que aprendi na escola e com outras leituras sobre a História de Portugal.
Tenho apenas um ponto a apontar: a rapidez com que se deu o desfecho, que apesar de tudo o sabíamos como sendo a única solução.
Não obstante, foi uma leitura extremamente interessante, com a qual aprendi imenso e me fez pensar que a actual realidade política e social apenas reflete o passado.
Recomendo!


_______________________________________________________________ 

ENTREVISTA PUBLICADA PELO JORNAL "I" EM OUTUBRO 



Tem algum método de escrita?
Tento cumprir o tempo destinado à escrita, almejando alcançar o número de páginas previstas para cada sessão de trabalho. Escrevo linearmente, construindo o romance como quem edifica uma casa: dos alicerces para o telhado.
Faz algum esboço das personagens e da trama?
Cada romance é escrito a partir de uma grelha previamente elaborada. Tal como a planta de uma casa: cada divisão é um capítulo, cada capítulo é um conteúdo. É por aqui que me oriento. Parto da ideia, num capítulo, mas não sei que forma e matéria terá. É caso para dizer que a história se autodetermina.

Faz muitas pausas?
Faço as pausas a que estou obrigado por imperativos profissionais e familiares. Tento evitar interregnos extensos para não quebrar o ritmo de escrita. Por este motivo, não há lazer nos fins-de-semana.

Espera pela inspiração?
Não. Vou ao encontro da inspiração durante o processo de escrita. A criatividade não nasce nem cai do céu; é gerada por estímulos intelectuais. É preciso procurá-la. Mas só a encontra quem a tem.

Escreve a computador ou à mão?
Computador. O Word permite-me ter boa perceção da estrutura do texto. E neste momento, estando obcecado comas correções, o Word tem a vantagem de poder saltar de um lado para o outro com facilidade.

Usa um tipo de letra específico?
Times New Roman, tamanho 12.

Tem manias, como acabar sempre uma página, por exemplo?
Gosto de acabar uma sessão de trabalho com a página completa. Mas prefiro fechar o Word depois de ter completado uma sequência narrativa, mesmo que isso implique uma página incompleta.

Pensa logo no título ou surge depois?
Primeiro penso na ideia geral do romance, e logo depois no título.

A primeira frase mantém-se ou muda?
Não me lembro de alguma vez ter mudado a primeira frase. Esta é já o resultado de um trabalho de seleção entre um vasto leque de possibilidades. Por ser a primeira, tem de ser uma frase perfeita em todos os sentidos. Pelo menos tento. As restantes sofrem, muitas vezes, tratos de polé.

Evita ler livros quando escreve?
Não. Invento tempo para ler, nem que seja em sítios inusitados. Nem sequer receio sofrer influências de outros autores. Nunca me desvio do registo de escrita selecionado para um romance.

Ouve música enquanto escreve, ou prefere o silêncio?
Consigo trabalhar com ruído à minha volta, em espaços privados e públicos, desde que ninguém interaja comigo. Prefiro bandas-sonoras (de filmes, por exemplo).

Qual é a sensação que fica quando termina um livro?
Se tiver a consciência de que escrevi um romance com qualidade, fico com a sensação de que a vida é bela. Este estado de graça dura menos de um mês; depois a vida, sem romance, deixa de ter sentido, e a fome de escrita começa a apertar. Tornou-se um vício depois de ter ganho o Prémio Literário João Gaspar Simões.

Trabalha em mais de um livro ao mesmo tempo?
Não alinho neste tipo de promiscuidade literária.

Escreve em casa?
Prefiro o aconchego do lar. Mas sou bioadaptável.

O que não pode faltar na sua mesa de trabalho?
Dicionário de Português e internet.

Em que está a trabalhar neste momento?
Estou a cinco capítulos do fim do meu último romance. Como sou disciplinado, sei que estará pronto no dia 31 de Dezembro próximo. O título? É segredo. Mas posso adiantar que é diferente de “O Fotógrafo da Madeira”. Em tudo.

Já deitou fora muita coisa que tenha escrito?
Nunca me aconteceu. Guardo tudo: o bom e o medíocre. Não tenho trabalhos incompletos, vitimados pela crise da folha em branco. Levo as empreitadas até ao fim. Só desisto rendido à falta de qualidade.

Como dá o nome às suas personagens?
Procuro nomes que tenham a mesma força, ou fraqueza, das personagens



________________________________________________________________ 



PRAÇA DO BOCAGE

Um livro… uma sugestão

09Sexta-feiraNov 2012


É nas noites frias e chuvosas que, deitado, viajo pelo universo… com os meus livros.
Hoje fui conhecer a capital da Madeira – terra linda – com suas belezas naturais… e “feridas” profundas que causam mais dores que alegrias aos que lá vivem. Eu conto.
A vida – eu já o sabia – tem sido difícil para todos, em particular para os mais pobres, para os que vivem do seu trabalho. Ontem como hoje o desemprego, a emigração e o empobrecimento são verdades que não carecem de demonstração, porque são reais e visíveis – com pequenas oscilações intermitentes – e que não descolam deste nosso mal viver.
E é da vida das gentes do Funchal, no já longínquo início do século XIX, que o autor – António Breda Carvalho – centra a narrativa do seu último livro, O fotógrafo da Madeira, que pela qualidade da escrita e pelo retrato original e fidedigno da época – escrita que reconstrói o ambiente social, político e económico de então – merece a melhor atenção.
A vida dos mais desfavorecidos – por oposição à boa vida dos “fartos” –, a justiça – a que existe não satisfaz, porque injusta, a que se anseia… tarda –, o bem e o mal, a liberdade religiosa, as relações de poder instituídas e os seus interesses, os pequenos enredos, mesquinhos, os jogos e as ambições desmedidas, a insaciável busca de protagonismo dos mentecaptos, o sofrimento e a vida rude e dura da maioria, em desconformidade com o prazer e a luxúria de alguns, são realidades descritas com uma “transparência lúcida” e de forma inteligente.
E mesmo em tempos de escuridão, a vida também é feita de relações de amizade, de amores e paixões, com ou sem sexo, de heróis e vilões, de aparências, de intrigas e de jogos políticos que minam os valores e os verdadeiros interesses que urge prosseguir.
Esta é uma terra de contrastes onde a cor e a dor marcam o viver de cada dia.
Um livro a ler… sem qualquer dúvida.

 __________________________________________________________________

 ________________________________________________________________

O FOTÓGRAFO DA MADEIRA - António Breda Carvalho

(Romance) Oficina do Livro, 2012, 286 págs.

Como leitor atento, às vezes, um pouco minucioso, tenho para mim que um bom livro é sempre aquele que interroga o leitor, que questiona a sua sabedoria e que acrescenta valor em ensinamentos/aprendizagem; digamos que um bom livro é aquele que nos fica na memória por muito tempo, porque o sentimos e reescrevemos enquanto viajámos nele e com ele. O “Fotografo da Madeira”, de António Breda Carvalho (ABC), tem esse condão, conseguido através de uma narrativa fluente, salpicada de frases com grande conteúdo literário, mesclado de uma sintaxe rica e adaptada ao contexto temporal e espacial em que decorre a narrativa.  
A prova do que se acaba de referir está na imagem do livro acabado de ler: com a ponta do lápis foi riscado, sublinhado e anotado, deixando agora sim, pouco espaço em branco, com frases manuscritas nas margens e nas páginas finais (local predileto para anotações). No final da leitura/estudo/aprendizagem, por caminhos de prazeroso deleite literário deste “Fotógrafo”, o escrevedor destas linhas dirigiu-se à estante cá de casa, e fez uma análise de circunstância comparativa a outros livros do género outrora lidos em idênticas circunstâncias. Então, foi com algum espanto, que se constatou, que alguns romances históricos como o “Equador” ou “A Filha do Capitão”, não apresentam tantos sublinhados e riscos a lápis de leitor, o que induz menor qualidade literária, comparativamente com “O Fotógrafo da Madeira”. Mas direi mais, é que a dada altura me senti como que a reler os clássicos de Eça e de Camilo, embrenhado em ambientes e linguagens com afinidade à época oitocentista, idêntica àquela que se desenrola esta ação na Madeira.
Portanto, o primeiro lugar no pódio do Prémio Literário João Gaspar Simões encaixa que nem uma luva, é merecido o galardão literário, tendo como teve concorrência de monta, não só em qualidade como em quantidade. O autor de “O Fotógrafo da Madeira” surpreendeu, também, porque conseguiu vestir com riqueza (exterior e interior) as personagens, porque é dono de um singular espírito criativo, e, por vezes, uma trama surpreendente (na pág. 40), aquando da entrevista de Laura para ingressar no consulado, em que deixa o leitor suspenso sobre se fica ou não com o emprego, culminando num diálogo simples de aceitação, um diálogo de mestre.
Existe também um grande equilíbrio na narrativa, embora, quase no final da pág. 268 e seguintes, talvez pudesse evitar, de novo, aquelas explicações, pois já existiram antes, ou se não existiam, subentendiam-se, ficando mais rica a obra literária com essa construção interna do leitor.
Em suma, ABC apresenta um excelente domínio do diálogo, uma vivacidade na circulação das personagens no espaço (como se tivesse vivido lá, à época), com uma caraterização madura do tempo e dos cheiros, num romance quase sem mácula.
                                                                        António Canteiro


__________________________________________________________





Afonso Elias Ayres Drumond, nado na Madeira, é o cônsul honorário ao serviço da República francesa a procurar, em retorno às origens, diligenciar pelo progresso da ilha, enfrentando todo o tipo de interesses instalados e de despotismo local que permite uma realidade antropológica filiada nos privilégios do morgadio, na indigência generalizada e na realidade do êxodo dos filhos da terra a caminho de Demerara em busca de uma vida melhor, ainda que denunciada como uma escravatura branca. Afonso, herói idealista que perfilha os ideais da revolução francesa, estabelece uma dinâmica de progresso na ilha, assente na sua iniciativa privada, na recuperação de instituições madeirenses e na teia de relações protocolares com as elites inglesas com influência na Madeira. E é neste emaranhado social que seguimos o trajecto de uma personagem, confrontada com o marasmo à sua volta e em contenda contínua contra as forças inertes e moralistas. No final, sobra um travo fatídico de sabor queirosiano.
O que surpreende nesta obra é o universo romanesco que o autor constrói, firmado numa intriga cheia de pormenores históricos, com um rigor de que já não parece fazer-se uso entre os novos autores. Para além disso, a intriga não perde tempo a arrastar-se em pequenas narrativas que porventura aliciam pela forma, mas pouco adiantam no conteúdo. Ao invés, A. Breda Carvalho consegue manter uma atmosfera coerente, arrumada e que desenha um arco sólido global, cumprindo-se os nós dos vários meandros à medida que a trama se aproxima do final. Para mais, temos aqui um verdadeiro tributo ficcional e histórico à ilha da Madeira.
Este é um livro que aborda a questão do liberalismo e do absolutismo arreigado, da visão moderna e do conservadorismo instalado, da questão religiosa e das questões sociais, políticas e privadas, com incidência para a esfera do plano intimista amoroso e sexual.
Alguma pressa de atingir o desfecho terá abalado os últimos capítulos e em especial o 26º. Como outros pontos fracos apontáveis, eventualmente alguma inflação dos registos humorísticos assente na necessidade de os comprovar (risos, gargalhadas), alguma misoginia ou androcentrismo aparentes (eventualmente por mor de um contexto de época), alguma eventual descontextualização lexical (a que talvez pudesse ser dada mais atenção), alguma preocupação excessiva em situar cronologicamente os factos, e problemas pontuais na disjunção de assuntos que poderiam ser resolvidos com um simples espaço em branco.
Por outro lado, a elegante capacidade discursiva de Eça é aqui notável e notória, bem como certo Garrett na abordagem à dualidade amorosa com o sexo oposto, não esquecendo algum Sousa Tavares de Equador. Este é um livro mais do que conseguido, repleto de recursos discursivos a fazerem jus ao melhor da narrativa do século XIX, com um domínio assinalável do discurso indirecto livre, da metáfora, do verbo metaforizado e da hipálage, da descrição sinestésica, das atmosferas sociais de época e da habilidade narrativa em campos específicos como o das corridas de cavalos, da música, da pintura e da fotografia, da religião e do laicismo, e mesmo do erotismo. Por tudo isto, arrisca-se a obra a adaptação cinematográfica ou televisiva, o que não nos parece nenhum exagero.
Uma questão colateral coloca esta obra ao leitor: é possível um autor contemporâneo escrever uma obra de época como um autor o faria no período em questão? Breda Carvalho parece querer decidir essa questão na forma como mimetiza certa narrativa portuguesa dos anos 1800 e a enxerta de curtas prosas epistolares e informativas mais ou menos enquadradas nesse tempo. Mas a resposta será sempre negativa, ainda que, em todo o caso, o autor tenha corrido o risco, e bem, de abordar uma lexicologia documentada e historicista que só adensa o universo riquíssimo do universo recriado.
Entre os novos, Breda Carvalho aparece como uma excelente surpresa. Que seja para ficar e dele venham novos registos discursivos.
António Jacinto Pascoal

________________________________________________________________

“O Fotógrafo da Madeira” | António Breda Carvalho
Apesar de um final algo apressado, “O Fotógrafo da Madeira” revela-se um curioso retrato de uma época impulsionada pelo espírito inventivo
Em 1846, depois de embarcar no vapor Victoria, o jovem Afonso vira costas à Madeira e a um País mergulhado no absolutismo, rumo a Paris e a uma educação abençoada pelo espírito liberal. Vinte anos mais tarde, Afonso Ayres Drumond regressa à Madeira para gerir o negócio dos pais falecidos – a produção do belo vinho da Madeira – e na qualidade de cônsul francês.
Assumindo a missão cívica de estimular o crescimento económico na ilha, melhorando as condições sociais da população e tentando impedir um fluxo migratório com o ar de “escravatura branca”, Afonso irá ver-se rodeado de um grande número de inimigos, avessos a qualquer ideia de mudança.
A par da política acompanhamos as suas paixões pela pintura e pela fotografia, assim como o romance com a filha do feitor que, apesar de pertencer a uma classe inferior, possui uma educação muito liberal; e também o aparecimento de outras mulheres que, seja pelo impulso diplomático ou por revelarem uma personalidade fascinante, cativam Afonso num paralelo a uma relação que arde em câmara lenta.
Apesar de um final algo apressado, “O Fotógrafo da Madeira” revela-se um curioso retrato de uma época impulsionada pelo espírito inventivo e que, em Portugal, foi marcada pelas clivagens entre classes sociais, o papel secundário da mulher, o combate à religião protestante, o pacto entre a Igreja e o Estado, um êxodo massivo de portugueses e uma guerra acesa entre o liberalismo e o absolutismo.
Uma edição Oficina do Livro


______________________________________________________________________




___________________________________________________________________________

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Um fotógrafo, a Madeira e França

Aqui há umas semanas atrás recebi este livro que me suscitou alguma curiosidade e que por isso hoje partilho convosco como sugestão de leitura. Talvez pelo cinzentismo do céu, hoje era o que me apetecia fazer: ficar em casa, no meu sofá, com uma boa chávena de chá e um livro. Mas não me estou a queixar. Tenho trabalho e isso é mais do que importante. Mas de volta ao livro. “O Fotógrafo da Madeira” é um título de António Breda Carvalho, professor de profissão, mestre em Estudos Portugueses. É um livro que junta ficção à própria História. Está cheio de intrigas, mas também nos mostra uma boa história de amor e paixão. No centro da trama está Afonso Ayres Drumond, um português que foi obrigado a viver a sua infância e juventude em França. Na primeira metade do séc. XIX, na Madeira, o patriarca de uma família produtora de vinho da Madeira vê-se obrigado, face ao contexto político, a enviar o seu herdeiro para Paris. Passados cerca de vinte anos, Afonso regressa à ilha na qualidade de cônsul francês e com o intuito de gerir o negócio dos pais falecidos. Depara-se, então, com uma realidade muito diferente da de uma França marcadamente liberal, cosmopolita e industrializada. Afonso encetará uma série de diligências de desenvolvimento da região no sentido de estreitar as relações entre a Madeira e a França, estimular o crescimento económico e melhorar as condições sociais da população. Esta missão custará um rol infinito de inimigos.

Ficaram com curiosidade de ler, tal como eu, não foi?
A edição é da Oficina do Livro.

___________________________________________________________________

1.
Estou a um terço do livro e estou a gostar muito, quer pela técnica, quer pelo português delicioso, quer pelo rigor histórico. A figura do Afonso Ayres Drumond está magnificamente construída e nós seguimos com prazer a sua trajetória, onde não falta a seriedade, e, no diálogo, o sentido de humor. Vai ser objeto das minhas prendas de Natal para quem gosta de ler. Olhe, sinto-me orgulhosa de ter recebido um prémio juntamente com um escritor como o António Breda. Comprei o livro na livraria do Centro Comercial das Glicinias, que representa a Leya, e estava bem posicionado. Conheço bem os empregados e disse-lhes que pensava que deveria ser aconselhado. Parabéns. Felicidades. O cuidado com que escreve cada palavra, cada ideia, dá muito prazer à leitura.
Maria José Leite

2.
Depois de ter lido que ficou em primeiro lugar no Top Ten de escritores lusófonos da FNAC, não tenho palavras que cheguem... Mas quero dizer-lhe que, embora não goste de ler os livros muito depressa (a minha irmã dizia que eu poupava os livros), o seu romance devorei. Quantas vezes voltei atrás para repensar as palavras e o pensamento. Segui o crescimento da figura de Afonso Elias Ayres Drumond que se foi desenvolvendo com uma força que dominou toda a história. A figura feminina de Laura maravilhosamente ligada a Laurissilva, e a de Claire Strong como um grito no meio da historia... E todas as outras personagens perfeitamente assentes num tecido literário maravilhoso, e também num rigor histórico que não pesa no romance. A construção e análise de sentimentos, e a dialética entre as emoções e a razão que encontramos na ligação de Afonso e Sofia, no jogo e sensatez politica, fazem do romance uma delícia de leitura.
MJL
___________________________________________________________________



____________________________________________________________________



______________________________________________________________________



___________________________________________________________________________
Já é conhecido o vencedor do Prémio Literário João Gaspar Simões
“O Fotógrafo da Madeira”, da autoria de António Manuel Melo Breda Carvalho, natural da Mealhada, foi a obra vencedora do Prémio Literário João Gaspar Simões, instituído pela divisão de Cultura da Câmara Municipal da Figueira da Foz.

Com um total de 65 obras a concurso, foram ainda atribuídas menções especiais do júri – constituído por António Tavares (vereador da autarquia), António Menano (escritor figueirense) e Luís Machado (representante da Associação Portuguesa de Escritores) – às seguintes obras: “A Ternura Mortuária do Abraço” de Luiza Guimarães Nunes; “O Selo” de Ana Filipa dos Santos Sobral; “Lugar da Capella” de João Carlos da Costa Cruz e “O luto e a Guerra” de Maria José Dias Leite.

A cerimónia da entrega do prémio e das menções especiais do Júri terá lugar no dia da cidade da Figueira da Foz, assinalado a 24 de Junho. O vencedor irá receber um prémio no valor de cinco mil euros.
07-05-2011























 


 































Sem comentários:

Enviar um comentário