CRÓNICA (4)


N O  I N T E R V A L O  D A  P U B L I C I D A D E





Ainda me recordo do tempo em que a televisão fez a sua estreia na minha aldeia. Era eu um miúdo com muitos sonhos cor-de-rosa. Essa caixinha mágica, embora a preto e branco, veio dar outro colorido à minha vida e à das gentes da minha aldeia.

Apareceu sorrateiramente, sem publicidade a anunciar a sua chegada. Entrou, pela primeira vez, em casa de um vizinho e nunca mais de lá saiu. Parece que ali se sentia à-vontade para falar e mostrar ao País o mundo que ela era. Foi uma grande novidade e admiração! Como era possível uma coisa daquelas ter tantas coisas lá dentro? Um dia (confesso), ainda me atrevi a espreitar pelos orifícios das suas costas. Nem digo o que vi...

Durante um mês não houve outro falatório. As más-línguas até chegaram a correr o risco de enferrujar. Para bem do povo e da nação acordaram a tempo; mas isto é outra história que nada tem a ver com as que a televisão tem para nos oferecer.

Desse tempo, lembro-me sobretudo das tardes de domingo. Foi o dia da semana que, repentinamente, ganhou um passatempo diferente. Adeus brincadeiras de ontem: jogar à bola, ao botão, à carica... Depois do almoço, a cachopada ia para casa do vizinho, onde se sentava em bancos compridos dispostos na garagem. A troco de dez tostões (não era brincadeira) tinha-se uma tarde cheia de televisão.

As imagens que permanecem na minha memória, desses primeiros tempos em que a televisão chegou à aldeia, pertencem a alguns programas que fizeram história. O mais aborrecido era o TV Rural, do Eng. Sousa Veloso. Contudo, não despregava os olhos do ecrã e, se não tivesse sido o destino, creio que hoje estaria a apresentar a 2ª série do TV Rural. O filme que via com mais entusiasmo, depois dos desenhos animados (conhecidos por "bonecos"), era O Santo, corporizado por Roger Moore. E quando o intervalo se lembrava de aparecer, num grande momento de expectativa criado pela acção do filme, nem arredava pé da cadeira, com receio de a curta sequência publicitária não me dar tempo de ir fazer um chichi.

Actualmente já não tenho este problema. Basta-me escolher um canal das televisões portuguesas para poder encher os olhos e os ouvidos com longas e adormecidas sessões de publicidade. É claro que aproveito este tempo para fazer coisas mais úteis. E, quando quero ver um bom filme ou um bom programa, regresso à televisão no intervalo da publicidade.



Jornal da Mealhada, 347, 21.02.2001 (sem atualização ortográfica)

CRÓNICA (3)


P A R A  F O R A,  C Á  D E N T R O


Um passeiozito era mesmo o que vinha a calhar, para descontrair os neurónios e esquecer os privilégios da minha profissão. E o tempo não podia estar melhor, neste outono acolhedor. Tem de ser um passeio por este Portugal português, à força de tanto ouvir na televisão «Vá para fora, cá dentro».

Quinta-feira, 31 de Outubro. Estou então de partida, com a mulher que me acompanha há muitos anos, rumo ao Alto Alentejo. Já deixei para trás Tomar e Abrantes, Castelo de Vide é o destino desta primeira etapa. Chego às 15 horas ao jardim da vila. Ainda mal comecei a estudar o lugar com os olhos e já me surpreendo: uma placa indica-me o caminho da Fonte da Mealhada. «Gente simpática», penso. «Como sabiam que eu vinha cá?». Vou à Fonte da Mealhada, que é para onde me leva o coração. É diferente do chafariz da minha terra. Prefiro o meu chafariz, mais pequeno, mais elegante e bem enquadrado no espaço envolvente. Ah!, se eu pudesse trocar a água!...

Volto ao centro da vila. Dirijo-me ao Inatel. Na recepção fico a saber que não há quarto disponível. É incrível: tanta gente a seguir o itinerário escolhido por mim! Tenho de escolher outro sítio para pernoitar. E com muita sorte, pois a última vaga esperava por mim. Aliás, viria a ser assim até à última noite da viagem. Voltei, à noitinha, ao Inatel, para jantar. Bem servido e mais barato. Bem instalado fiquei também na residencial. E mais barato qualquer coisa. É a sorte de ser sócio do Inatel e de não ter quarto disponível.

A tarde é pequena, anoitece cedo, não há tempo a perder. Vou ao Posto de Turismo e recolho os percursos históricos. Pés e máquina fotográfica a caminho do castelo. Ruelas estreitas e íngremes revelam-me, entretanto, a presença de uma judiaria naquela terra. As pessoas são afáveis. Até dá gosto falar português. Uma hora depois, regresso ao centro da vila. Tenho de prestar culto à Igreja Matriz e de cumprimentar o sempre jovem D. Pedro V, no alto da sua estátua, que também por aqui passou. O dia está ganho. Castelo de Vide ganhou um amigo.

Sexta-feira, 1 de Novembro. De Castelo de Vide a Marvão distam 13 quilómetros. Não há pressa, a manhã está por minha conta. A meio do percurso começo a adivinhar a vila no alto do monte, escondida dentro das antigas muralhas. À chegada, mal transponho a porta da cerca, há uma rua estreita que sobe pelo branco das pequenas casas. Este percurso trilhado por ruelas quer-se pedestre; ao fazê-lo, muitas vezes me vem à memória a histórica Óbidos. Subo a uma das ameias do castelo e contemplo a vasta planície que se perde na fronteira espanhola. E eis que compreendo a importância geo-estratégica desta pequena povoação nos tempos remotos. Desço ao miolo da vila, visito o museu e busco depois no Posto de Turismo um pouco da sua história metida em meia dúzia de linhas escritas. Recebo uma separata da revista IBN MARUÁN (do árabe: Filhos de Marvão). Volto novamente a Castelo de Vide, agora em pensamentos, para lembrar as inúmeras publicações culturais que vi editadas com a chancela da Câmara. Tanta sensibilidade cultural por parte das edilidades locais basta para fazer inveja a qualquer homem de letras que viva longe desta região. E, ainda entretido com estes pensamentos, chego à porta da casa onde viveu Branquinho da Fonseca durante largos meses. Estou predestinado a ter estes encontros inesperados com as figuras literárias que deixei nas estantes de casa e que queria esquecer absolutamente por quatro dias. Mas Branquinho da Fonseca sussurra-me já ao ouvido a passagem do livro Caminhos Magnéticos, onde, no conto "O Conspirador", descreve Marvão.

«Um monte de casitas brancas em cima duma pedra gigantesca, uma pedra preta, que parece um navio com costado de 300 metros de altura: é Marvão. A muralha protege a povoação em toda a volta, para não deixar sair nem entrar nada. Não deixar entrar a civilização nem sair o ar estranho e primitivo do burgo onde se penetra por duas portas, ambas difíceis, com seus arcos sucessivos em zig-zag. As ruas muito estreitas e torcidas, calcetadas com pedregulhos irregulares, emaranham-se todas umas nas outras, em ângulos e esquinas imprevistos. Há casas verdadeiramente incrustadas no monte: à frente têm três andares e atrás o telhado toca no chão. É um labirinto de escadinhas toscas e vielas íngremes. As habitações, muito caiadas, com buracos que são janelas e com portas medievais em ogiva, roídas dos séculos, estão umas a cavalo nas outras, no alto do monte, a olhar para Espanha. Torres, arcos, portas, contrafortes e trincheiras, num conjunto de feroz estratégia, cercam o casario ingénuo que paira sobre a paisagem imensa. Lá para baixo contempla-se o mundo em mapa de relevo a belas cores: montes, rios, planícies, cidades, vilas, estradas, florestas.»


Com esta leitura abalo para Portalegre, onde espero encontrar um almoço com sabor alentejano e a Casa-Museu de José Régio, porque Branquinho da Fonseca me abriu os apetites literários.

É feriado, os museus estão fechados. Pois fazem assim muito bem, que isto de ir para fora cá dentro não convém que seja em fins-de-semana prolongados, por causa do grande afluxo de turistas portugueses e espanhóis que podem desgastar os nossos museus e monumentos. Vou às sopas, onde me tenho de contentar com umas lulas grelhadas, depois de buscas infrutíferas por um ensopado de borrego, ou qualquer outra coisa que a nossa publicidade turística tanto apregoa. Vá para fora cá dentro, e vá com Deus.

De sabor alentejano levo algum vinho comigo, a quantidade certa para uma tarde de viagem. O destino é agora Estremoz, com desvio por Crato, Alter do Chão, Avis, Fronteira e Sousel. Descanso os olhos e a alma na paisagem. Apenas o coração se cansa neste fatídico feriado nacional: igrejas e monumentos fechados. Salvam-se os folhetos dos postos de turismo e a máquina fotográfica __ para mais tarde recordar o que não se pôde visitar. Enfim, eis Estremoz, o meu poente nesta tarde de sexta-feira. À noite comerei uma açorda que, sabê-lo-ei depois, me fará pensar na açorda da minha tia.

Sábado de manhã. Deixo para trás Estremoz. O itinerário promete ser muito mais interessante. Num salto de quatro rodas, estou em Vila Viçosa, junto ao Paço Ducal. Junto-me ao grupo de pessoas __ perto de trinta __ que se prepara para visitar o interior do Paço. Cada entrada, mil escudos. Encontrar um museu aberto tem os seus custos. No fim da visita guiada, depois de me maravilhar com as riquezas que materializam as gerações dos Duques de Bragança, não chorei o dinheiro e o tempo gastos. Quis comprar uma colecção de postais, exposta na vitrina, que me seduziu a vista. Estava esgotada. Olhei tristemente para o novo grupo de trinta pessoas que se preparava para começar a visita. Cá fora, contemplei a vasta fachada do Paço. E tirei-lhe o retrato, que será, certamente, o postal da triste memória.

E subo agora ao castelo, onde o cemitério me acolhe aos pés de Florbela Espanca, junto à sua última morada. Despeço-me e ela agradece a visita:

Ó minha terra na planície rasa,

Branca de sol e cal e de luar,

Minha terra que nunca viste o mar,

Onde tenho o meu pão e a minha casa.


Finalmente, repousa em paz a sua dor.

Almoço em Elvas. Tempo de ver o Aqueduto, o centro histórico e, ao longe, Badajoz à vista, onde irei brevemente.

A tarde leva-me a Campo Maior. Visito a Igreja Matriz e, ao lado, espreito o interior da Capela dos Ossos, pelo vitral da porta fechada. São estes os ossos do turista, de ir para fora cá dentro.

Quero chegar a Portalegre ao anoitecer. Fujo da estrada principal e aventuro-me pela Serra de S. Mamede, onde o passeio culmina no Alegrete, pequena povoação.

Sábado à noite em Portalegre. Não há cinema na cidade. Acenderam-se as luzes e apagou-se o coração. Uma volta pedestre, nocturna, é o que me pede esta deliciosa açorda de marisco.

Domingo. Não posso partir sem visitar a Casa-Museu de José Régio. Entro no reino de Cristo. São centenas de cristos que o poeta foi coleccionando durante os anos em que foi professor de Português e Francês em Portalegre. Sobre a secretária, no seu escritório, leio o original do poema __ "Toada de Portalegre" __ que a janela abriu sobre a cidade.


Em Portalegre, cidade

Do Alto Alentejo, cercada

De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,

Morei numa casa velha,

Velha, grande, tosca e bela,

À qual quis como se fora

Feita para eu morar nela...


Rumo à Beira Baixa. A paisagem vai-se transfigurando, à medida que me afasto do Alto Alentejo.

Em Castelo Branco, visito o Jardim do Paço e o Castelo. O almoço é a caminho de Idanha-a-Velha, onde me espera a estação arqueológica. É uma povoação __ Civitas Igaeditanorum __ que sofreu a sobreposição de diferentes civilizações. Importante centro no período romano, na linha da estrada Emerita (Mérida) __ Bracara (Braga), assistiu à passagem das culturas visigótica e árabe, entrando em declínio após a invasão muçulmana. Admiro a ponte e o arco romanos, a torre de menagem dos Templários e a Sé, que testemunha nas suas pedras a presença de povos milenares.

São quatro horas da tarde. É tempo de calcular a viagem de regresso a casa. Mas não resisto ao apelo da vizinha Monsanto, que lá no cume do monte, qual Olimpo dos deuses humanizados, me acena com um sorriso feito de pedra.

E quando chego ao alto da povoação, fico quedo e mudo de espanto. Aqui é a vida que se agarra ao chão como estes penedos seculares. Penedos que resistem, teimosos, à erosão do tempo. O castelo é a coroa de Monsanto, depois de um percurso íngreme. Do reino das águias, lá no píncaro do monte, a planície rende-se à majestade de Monsanto.

São horas de regressar. Desço à povoação e procuro a rua onde está a casa de Fernando Namora, quando neste lugar exerceu medicina, deixando aqui alguns retalhos da sua vida de médico e colhendo a vida de algumas personagens que recriou na literatura. É fado meu estes encontros literários. A Nave de Pedra revela-me um outro olhar sobre Monsanto.

«Por aqui, dizia, se encontra Monsanto. Onde a fraga se torna pesadelo. De longe a vi e a temi, um dorso de monstro a crescer para nós até tomar conta de quase todo o céu, num tempo de já não sei quando e com uma personagem decerto desaparecida, esse eu bisonho a eriçar-se de espinhos, ou de frouxidão embuçada, no trato dos homens. Um eu que só tarde veio a reconhecer que é no gesto sem medo, afinal o gesto que pedia e lhe pediam, que estava o segredo da comunicabilidade.

Homens e panoramas desta estremadura beiroa, de desconfiança em alerta, nos oferecem, pois, a ideia de um viver tão duro quanto marginal. Curtido na servidão e por isso amuado. (...)

Desço da pedra à terra, do alto do monte à planície. Inicio a viagem de regresso a casa.

Um dia voltarei. Para fora, cá dentro.

Jornal da Mealhada, 220, 15.11.1996

CRÓNICA (2)


NATAL NA ALDEIA



Todos os anos, pelo Natal, venho à aldeia. É uma das muitas visitas que faço sempre que a vida profissional me permite. Não é, no meu caso, uma fuga burguesa. Não é, também, uma atitude conotadamente intelectual própria de gente letrada. Estar na aldeia é, para mim, beijar a face da vida. Longe da civilização, liberto de todas as artificialidades, venho ao encontro das raízes da minha identidade. É sentir sob os meus pés os verdes campos. É molhar as mãos nos límpidos riachos. É ver as pequenas casas de pedra fazendo as ruas estreitas. É escutar o bulício da vida no despertar de cada madrugada. É chegar à noite e sentir nas roupas do corpo o cheiro que define um dia campestre.
Estou, pois, na minha querida aldeia. Na velha casa familiar tudo permanece no seu lugar como se a vida ainda aqui morasse. Mas é uma vida moribunda: as traves do telhado mais carcomidas; as paredes mais esfareladas; os móveis e os utensílios domésticos sem brilho. Uma película de pó quer delir a biografia da casa. Porém, escuta-se no silêncio o respirar da memória. Tenho de ressuscitar a casa. Tenho de tornar esta solidão habitável, reanimar os fantasmas adormecidos, para que o meu isolamento do mundo, neste Natal, seja a redenção da minha condição humana.
É uma tarde de sábado. Espreito pela janela e vejo farrapos de neve sobre os telhados. Lá fora, tudo espera por mim. É um apelo inadiável nesta véspera de Natal. Voltar a esta casa depois, acender a lareira e deixar-me ficar junto a ela, num conforto ancestral, esperando a revelação da noite sem tempo.
Chego à rua. Um manto branco cobre a aldeia. Aperto o sobretudo para me proteger da friagem. Avanço ao acaso, à procura de um passado nostálgico, de um tempo perdido. À minha volta a neve cai leve, levemente. Falta o fumo a sair de uma chaminé para ser um cenário ideal para ilustração de um postal natalício. Aqui, porém, a realidade é bem diferente. Tudo está abandonado e inerte. O que se observa são as ruínas de vidas ausentes.
Sou senhor absoluto da aldeia. Dono de um império cuja vida me passa pela memória.
A mulher que sabia ler nos olhos de azeite, abertos na água de um prato, o mau olhado deitado a uma pessoa. A escola onde aprendi a soletrar as primeiras letras. A taberna onde os homens molhavam a secura da vida. A fonte que tantos pingos de amor deu aos namorados que ali se sentavam. A ponte romana de onde uma menina se atirou para a água, porque o seu sonho era ser um nenúfar. O cemitério onde estão os ossos da memória.
Os montes e os pinheiros distantes, recortados de neve, anunciam a noite. Inspiro fundo o ar puro. Com esta revisitação ao espaço do passado, é hora de voltar à velha casa e preparar a minha noite de solidão. Início o regresso. Sou silêncio e aragem. Sou vida e morte. Sou todo inteiro num instante de mim.
Súbito no ar, um ganido. Viro-me. Um cão, uns metros longe, com a fome agarrada ao pelo como carraça, olha-me com olhos de solidão. Chamo-o, com a mão aberta, mas ele hesita, ainda desconfiado. Continuo a caminhada. Pressinto o animal no meu alcance, a distância segura. Viro-me. Chamo-o novamente, desta vez com um assobio triste como a sua sorte. Aproxima-se um pouco mais, mas sempre alerta.
Chego à porta da casa, já com o cão à minha beira. Entra comigo. Percorre a casa, como se reconhecesse nela lugares íntimos. Por fim, na cozinha, sossega junto à lareira apagada. Vejo nos seus olhos o tremelicar das chamas. Talvez seja a saudade de um lar que nele vive. Parece dizer-me que é ali o sítio da nossa noite.
Sim! Será a nossa noite, o nosso espaço, o nosso tempo. Faremos companhia um ao outro. Dois seres estranhos, sem nome, unidos pelo destino. De mais não precisaremos para cumprir a nossa condição.

Jornal da Mealhada, 338, 20.12.2000

CRÓNICA (1)

A LEVEZA DO OUTONO

É uma tarde de sábado. O homem deambula pelos campos. Caminha devagar, ao acaso, contemplando a paisagem. O tempo não convida a passeios. É um dia cinzento, mansamente tocado pela aragem fria. Mas o homem sente-se bem. No espaço aberto à sua volta, pode recolher-se dentro de si. É o que mais anseia.
A saudade invade-o. Entra-lhe na alma como a humidade da tarde nos ossos do corpo. O chão que pisa é o do passado. O tempo em que a sua vida tinha o tamanho de uma tarde campestre sem relógio. O tempo do sonho e das convicções que não maculavam a sua existência. O tempo da inocência.
A medida da sua felicidade resumia-se à indiferença por coisinhas das quais depende a estruturação social e a afirmação de cada indivíduo. Não tinha clube de futebol; mas gostava de apreciar num jogo o espectáculo desportivo, sem aderir a discussões clubísticas marcadas pela fanática parcialidade. Não tinha partido político, mas acompanhava com atenção as movimentações partidárias, e na hora das eleições o seu voto era esclarecido e consciente. Não tinha a certeza de ter amigos, mas sabia que tinha a sua vida e os seus sonhos. Não precisava de mais nada para ser a expressão de si próprio.
O homem passou um pequeno silvado e avança por entre giestas. Os seus passos o aproximam de um extenso vinhedo orlado de macieiras e pereiras bravas. Pára. O fundo cinzento da tarde exibe a natureza sem cor. As hastes das videiras, despidas de folhagem, parecem gritos agredindo o ar. As árvores, em volta, esqueletos vivos chorando as últimas folhas ressequidas. O cenário é triste e desolador. A morte corrói a vida.
O homem veio à procura da vida. Foge da urbe. Desde que nela entrou, quis conhecer a engrenagem do seu funcionamento. Aprendeu a ter um clube de futebol e a ter um partido político. Aprendeu, no fundo, a ser igual entre os iguais. Com tudo isto, ao fim de não muito tempo, aprendeu a conhecer o rosto da inimizade e da falsidade. E aprendeu a conhecer os enganos que as certezas impõem. No mundo das insónias, não havia lugar para o sonho. Cansado, carregando dentro de si a sombra, regressou ao espaço do passado.
Ao homem, de repente, assoma um sorriso à flor dos lábios. Inspira fundo, sorvendo o ar à sua volta. O que ele vê, agora, é o milagre da vida. Ele quer fundir-se com aquela natureza. Ele quer, à semelhança das videiras e das árvores, deixar cair o peso da folhagem sem qualquer préstimo. Ele quer sentir-se nu, despojado até à raiz da alma. Ele quer ser a leveza do outono para se cobrir de uma nova liberdade.

Jornal da Mealhada, 333, 15.11.2000
(sem atualização ortográfica)

APRESENTAÇÃO PÚBLICA DE O CRIME DE SERRAZES


O CRIME DE SERRAZES

Palavras do autor


Sou natural da Mealhada e residente na mesma cidade, não tenho qualquer ligação ao concelho de S. Pedro do Sul, nem a Serrazes, nem à família Malafaia, e, por estes motivos, com toda a legitimidade podereis perguntar por que razão me interessei pelo crime de Serrazes para o transformar em romance.

Imaginando que, efetivamente, a pergunta acaba de me ser colocada, respondo que, na verdade, o meu primeiro romance, As Portas do Céu, inspira-se na história do convento de Santa Cruz do Buçaco, onde durante 234 anos, do século XVI ao século XIX, habitaram os monges carmelitas, fruindo nesse paraíso terreal as delícias espirituais. Quero dizer, com esta informação, que é muito comum os escritores privilegiarem, em primeiro lugar, a sua pátria regional, que é o cantinho geográfico onde pulsa o coração e onde os pés se firmam como raízes. Exemplos de escritores telúricos há com abundância na história da literatura portuguesa, nomeadamente o transmontano Miguel Torga e o gandarês Carlos de Oliveira, duas referências de topo nacional, embora tenha de esclarecer que, no caso de As Portas do Céu, não se trata inequivocamente da relação entre o homem e a terra, mas de um património histórico-cultural de carácter religioso fundado no meu concelho, que sentimentalmente me convocou, enquanto escritor, para a sua elevação literária, à semelhança da farta inspiração que o Buçaco despertou nos poetas e prosadores ao longo dos séculos, sobretudo no período do Romantismo, quando a Natureza, com todo o seu deslumbramento, se tornou um tópico recorrente na literatura.

Devo dizer, contudo, que nem sempre a literatura de incidência regional é obsessão ou aposta dos escritores, e no que me diz respeito, à semelhança da maioria, não me considero um escritor enraizado, sou pássaro que voa livremente, abrindo as asas à universalidade das paisagens, dos sítios, dos temas, de tudo o que alimenta a criação literária, porque tudo, onde quer que a ação se localize, no meu quintal, em Serrazes ou numa grande cidade, é universal no que concerne à natureza humana.

Corroborando este raciocínio, digo que em 2012 foi publicado o meu segundo romance — O Fotógrafo da Madeira, vencedor do Prémio João Gaspar Simões, instituído pela Câmara da Figueira da Foz. Do Buçaco voei para a ilha da Madeira, aterrando no ano de 1843. Uma história com base em factos reais que, embora se enquadrando num tempo antigo, permanece atual na fotografia que faz da sociedade, dos esplendores e misérias que caracterizam as pessoas e que refletem a dimensão universal da alma humana.

Compreendido está que, na minha opinião, os acontecimentos históricos não têm dono, não têm registo de propriedade privada, a todos pertencem independentemente da distância geográfica ou afetiva, todo o património material ou imaterial é barro que as mãos dos criadores moldam e transformam em objetos de arte. Eis, portanto, o fundamento da minha incursão literária nos anais do crime de Serrazes ocorrido há cem anos.

Agora admitamos que sou confrontado com outra pergunta, tão legítima como a primeira: se sou da Mealhada, tão distante de Serrazes, se não tenho qualquer ligação à região de Lafões e à família Malafaia, como descobri a documentação acerca do crime que é o motivo de estarmos aqui reunidos hoje?

Tenho a certeza de que, se não existisse um recurso chamado Internet, dificilmente teria chegado à notícia da tragédia que vitimou Augusto Malafaia no dia 26 de julho de 1917. Para mim, viajar no universo do Google é como estar na Torre do Tombo a pesquisar informação histórica. Assim aconteceu, de facto, durante um passeio virtual por solares abandonados. Há centenas no País, e fascina-me imaginar as vidas que as paredes envelhecidas guardam. A importância desse vasto património é tão alta que brevemente estará à venda o livro Lugares Abandonados de Portugal, da autoria de Vanessa Fidalgo e editado pela Esfera dos Livros.

Em 2014, vi na Internet fotografias do solar em ruínas que se encontra em Santa Cruz da Trapa. A informação que colhi levou-me diretamente a Serrazes, onde virtualmente fiquei a conhecer a fachada da Casa das Quintãs, e tive ocasião de ler alguns textos sobre o crime que nesta casa tinha ocorrido. Tive, nessa altura, o lampejo de haver matéria importante para escrever uma história submetida à minha lavra criativa, pois não dispunha de dados concretos sobre o crime, e também não estava interessado em fazer a sua reconstituição, apenas aproveitar o essencial para escrever uma nova história. No verão do mesmo ano, propositadamente andei por estas terras, estive em Santa Cruz da Trapa e aqui, em Serrazes, e dos respetivos solares tirei algumas fotografias. Lembro-me de, em frente ao solar da Gralheira, escrever mentalmente: «As trepadeiras encravam as unhas nas fissuras e alastram a folhagem verde sobre as paredes que ainda resistem a mais de duzentos anos de abandono e solidão.»

Regressei a casa e guardei num arquivo toda a documentação que tinha encontrado sobre o crime, com a ideia de a ele voltar no futuro, assim que sentisse o seu apelo, a força misteriosa a que os escritores não resistem.

Decorridos dois anos, o romance sobre o crime ainda era uma ideia adormecida, outras mais fortes se haviam imposto; porém, numa das minhas viagens pela Internet, entrei no site de um alfarrabista do Porto e nele descobri um livro datado de 1922, intitulado Uma Causa Célebre — O Crime de Serrazes, por Cunha e Costa, o ilustre advogado que representou a família Malafaia no segundo julgamento, realizado em Coimbra nesse mesmo ano. Custou-me 15 euros o livro, lido com curiosidade e interesse, e foi a mola que me catapultou para a escrita do romance, já com a certeza de que valia a pena o meu empenho, porquanto estava perante um crime que tinha contornos para além da vulgaridade, desafiava pelo que mostrava e surpreendia pelo que escondia, não era mais um crime banal entre tantos outros que sempre encheram os jornais, enfim, tinha bons ingredientes para um romance.

Tendo já pronta a primeira versão do prólogo e do capítulo inicial, realizei nova viagem a Serrazes, no início de setembro de 2016, para tirar novas fotografias ao solar, por ter perdido as que tirara em 2014. Ao contrário do que acontecera nesse ano, havia gente na Casa das Quintãs, e não resisti à tentação de badalar o sino do portão grande, a fim de me apresentar e expor o meu projeto literário, para que me fosse permitido visitar o local do crime. Com simpatia, foi-me franqueada a entrada, e com surpresa descobri esta magnífica coincidência: o pátio interior parecia uma cópia do que imaginara para o romance, até uma árvore frondosa existia, embora se tratasse de uma magnólia, enquanto no romance é uma tília. Tinha escrito assim: «Amélia bebericava chá de tília, com folhas que colhia da grande árvore do pátio…»

Foi durante a visita que a família Malafaia me informou do evento que se realizaria no ano seguinte, e logo senti que já não podia desistir do projeto, que se justificava a publicação da obra e a sua apresentação pública no dia da cerimónia, proposta que a família Malafaia aceitou sem me impor qualquer restrição quanto ao conteúdo do romance, o que bastante me aliviou, porque assim podia abrir as asas da imaginação a meu bel-prazer. Depois fui presenteado pela drª Eugénia com uma cópia do livro que sua mãe publicara em defesa do bom nome de seu filho Augusto, ou seja, A Verdade do Crime de Serrazes, publicação de 1922. Pela forma como tudo se desenrolou, é caso para pensar que há coincidências e acasos felizes, que se conjugam para que as coisas aconteçam na altura certa.

Desde então lancei-me de corpo e alma à redação do romance, aproveitando ao máximo todo o tempo disponível, já com a certeza de a Câmara de S. Pedro do Sul financiar a sua publicação. Reconsiderei a planificação da obra e decidi que não escreveria um romance cuja efabulação configurasse um crime de difícil identificação com o de Serrazes.

A grande escritora Agustina Bessa-Luís foi exímia, no romance Eugénia e Silvina, a transfigurar e a subverter os factos relacionados com o célebre parricídio conhecido por crime da Poça das Feiticeiras, ocorrido perto de Viseu em 1925. Confesso que, antes de conhecer pessoalmente a família Malafaia, tinha a intenção de seguir o exemplo da Agustina, porque me dá mais prazer a liberdade de inventar a partir de uma base real. Mas, em face do novo contexto em que iria realizar o trabalho, entendi que o meu crime de Serrazes, embora com efabulação, teria de reproduzir a verdade do que aconteceu há cem anos. De facto, eu queria que este livro fosse a memória literária da tragédia que vitimou um homem inocente e a homenagem póstuma que manterá vivo Augusto Teles Malafaia, enquanto houver um exemplar do romance que resista ao pó do tempo e enquanto houver um leitor, seja de Serrazes ou de qualquer parte do mundo.

Despeço-me hoje de Serrazes e já não posso afirmar, tal como fiz na abertura deste texto, que não tenho qualquer ligação a esta terra.


Serrazes, 27 de agosto de 2017