O Velho

Quando tomei conhecimento da sua morte, já ele fora enterrado há dois meses. Soube-o por acaso, durante a leitura de um pequeno jornal de província na biblioteca da minha cidade. A notícia apanhou-me de surpresa, pois não esperava vir a saber da ocorrência numa situação destas. A sua morte, em si, nada me espantou. Era previsível. Quando o conheci, anos atrás, julguei estar perante um homem mais novo. O chapéu preto assentava sobre os raros cabelos grisalhos. Era possante. Com esta figura, não fui capaz de adivinhar os seus noventa anos.
Tivemos um relacionamento breve mas profundo. Deixou-me raízes na alma. É claro que falo por mim. Não sei o que de mim ficou nele. Acredito que nada de especial. Fui, com certeza, um homem banal que com ele se cruzou na vida.
Parti, ficou. Eu trouxe-o comigo, dei-lhe estatuto de personagem principal. Daquelas personagens humanas que, habitualmente, são transformadas em personagens de papel pelo escritor. Eu, escritor, confesso: não há melhor imaginação do que a realidade. E a realidade que foi esse homem está guardada na minha memória à espera de uma boa oportunidade para a transformar em personagem. Talvez dê uma personagem. Daquelas personagens singulares que, por si sós, fazem um conto ou um romance.
Nesse ano, eu optara por passar as férias numa aldeia da Beira Interior. Paz bucólica quanto baste, sem laivos de romantismo. Passeios terapêuticos e ar puro. Leituras despreocupadas. Eis tudo o que eu pretendia da minha fuga citadina.
Encontrei-o num desses passeios campestres. Os passos sem destino tinham-me levado até uma estação arqueológica abandonada. Tratava-se de uma vila romana que fora descoberta num olival. O entusiasmo dos populares, com a orientação de um arqueólogo amador, trouxe à superfície achados que colocaram o nome da aldeia nas primeiras páginas dos jornais.
Toda a glória terrena é efémera. Com ou sem história, a aldeia continua na mesma pobreza económica. O olival era mais produtivo.
«O azeite é a luz do povo», disse-me ele, lamentando o abandono da estação. E continuou: «Fui eu que descobri a existência destas ruínas. Não tenho estudos superiores, tenho apenas a quarta classe. Mas sou um estudioso que tenta decifrar os textos da natureza. Basta examinar a superfície das suas páginas para se descobrir nas entrelinhas o não dito. Até a superfície mais prosaica, mais árida, pode esconder um mundo de tesouros. Para se desvendar os segredos do mundo, é preciso saber captar os mais ínfimos sinais que os textos da natureza revelam à superfície.»
Foi esta revelação de um homem sem formação literária a falar de coisas com um estilo tão expressivo que me cativou. Era um sinal que eu não podia ignorar. Senti que nele, tal como acontecia com a natureza aparentemente estéril, poderia existir uma fonte de riqueza humana inédita na literatura.
Em outras circunstâncias, depois de termos criados laços de amizade, o seu discurso tornou-se mais natural. Falava com simplicidade, com o vagar da sua idade. Quando se referia a iniciativas que nasceram das suas mãos, as palavras saíam-lhe trémulas, tocadas de ternura e amor.
Levou-me, então, a visitar o pequeno museu que ali construíra com a ajuda dos aldeãos.
«Guardámos aqui os achados. Moedas, peças de cerâmica e de ourivesaria. Essas coisas já conhecidas mas sempre interessantes. Sabe, os documentos antigos referem a passagem por este sítio de uma via romana importante. Tenho uma teoria sobre o seu traçado. Mas os especialistas riem-se de mim. Não na minha cara, por respeito. Mas eu vejo-lhes o riso nos olhos. Ainda por cima, levaram as peças mais valiosas para o Centro de Estudos de Arqueologia, com o pretexto de fazerem um estudo rigoroso. Nós ficámos com as unhas sujas de terra.»
Durante o período de férias desloquei-me várias vezes à vila para me encontrar com ele. Falávamos das nossas vidas, dos nossos sonhos. Passávamos as tardes sentados num banco do jardim à sombra de uma tília frondosa, narrando o que nos ia na alma. Foi assim que, à medida que ele ia ganhando confiança em mim, sabendo que eu não era um igual aos outros arqueólogos que o olhavam com altivez e pena, me fui inteirando da sua vida passada. E eu, narratário da sua história, jamais pude esquecer essa narrativa que lhe conferia, sem favor, o privilégio de uma personagem única.
Quis mostrar-me a vila e as obras sociais que realizou. Visitámos o Quartel dos Bombeiros Voluntários, de cuja associação foi co-fundador e primeiro comandante do corpo activo. Passámos pela sede do clube de futebol e disse-me que fora ele a dar o pontapé de saída nesta modalidade. «Tempos difíceis», explicava. «Não havia dinheiro, os sacrifícios eram muitos. Tudo por amor à camisola e à terra. Agora…» Levou-me depois a um velho armazém que outrora fora um teatro cheio de actividades. E recordou a construção do edifício, cujo palco ele pisara tantas vezes como actor.
Via-se que o homem vivia preso à memória do passado. Sentia-se nas palavras serenas a nostalgia de épocas gloriosas. Eu olhava as ruas da vila, as obras por si construídas, e em tudo pressentia a sua imagem, o seu rosto, a sua pela, a sua voz. Este homem vivia da argamassa que sustentava o passado. Nunca aludia à sua vida presente. No entanto, eu sabia que estava viúvo e que os seus filhos haviam emigrado. Nas suas palavras nunca vislumbrei indícios de solidão. Não falava do presente e evocava o passado sem um leve queixume, com uma profunda paixão. O passado era a sua âncora e o seu espelho.
Vim a saber, mais tarde, através de um vizinho, na aldeia onde morei durante essas férias, que o Velho calava um desgosto no fundo do coração. Que na hora da verdade a terra se mostrava ingrata.
Uma luminosa curiosidade acendeu-se nos meus olhos. Com todos estes ingredientes, imaginava já uma boa história. Mas não tive coragem para abordar este assunto. Tocar a sua dor seria rasgar o véu da sua ilusão. A sua vida começava a percorrer-me as veias. E pela primeira vez senti-me a olhar para um homem e não para uma personagem.
No ano seguinte, regressei pela segunda vez à aldeia para umas curtas férias. Não costumo reincidir na escolha do mesmo lugar, gosto de mudar de sítio, ser itinerante por vocação, encontrar na variedade geográfica e etnográfica um enriquecimento cultural sem limites. Mas tinha o rosto do Velho colado a mim como a sua pele a revestir as obras sociais da vila. Sou escritor, busco personagens de carne e osso invulgares que sirvam para as minhas recriações literárias. Não há oportunismo no meu comportamento nem hipocrisia no meu relacionamento com elas. Impele-me a mesma paixão que alimentava o Velho. Ele captava os indícios históricos na face da natureza, eu recolho personagens sui generis que a face da vida não mostra a olho nu. Apenas formas diferentes de nos escrevermos na face do destino.
Voltei então à mesma aldeia, menos sentimentalista e ansioso por reencontrar esse homem, curioso por desvendar aspectos recônditos da sua alma ainda não acessíveis. Cheguei durante a tarde. Desfiz as malas e decidi dar um passeio pela estação arqueológica. O calor dilatava o canto das cigarras.
Quando me aproximei das ruínas, avistei o Velho. Apanhava uma pedra do chão, examinava-a e deixava-a cair. Repetia o gesto. Por vezes, examinava-a mais demoradamente e guardava-a no saco que trazia consigo.
Cumprimentámo-nos. Achei-o mais derreado, mais envelhecido. As suas palavras continuavam serenas, calmas como o chapéu na cabeça. Via-se que não lhe esmorecera o gosto pela arqueologia. E disse-me, muito entusiasmado, que as pedras que ele recolhia tinham impressões, sinais, marcas de uma existência humana remota que o tempo e a erosão não apagaram.
«Não lhas mostro agora porque estão sujas de terra. Vá a minha casa, amanhã. Tenho lá mais. Talvez me possa ajudar a decifrá-las.»
Fui. A casa estalava de velhice. A cal desprendia-se das paredes e um cheiro a mofo e a madeira carunchosa pesava no ar. Levou-me a um quarto sem móveis. O soalho estava coberto de pedras de todos os tamanhos. Pegou numa. Perscrutou-a
«Aqui está!», exclamou. «Veja esta incrustação. Nesta posição, vê-se que tem a configuração de uma moeda.» Largou a pedra. Pegou em outra. «Veja esta. Assim é um rosto, mas, se a virarmos, parece a cabeça de um cavalo.»
Eu nada via o que ele descrevia. Para mim, eram pedras e nada mais. Pedras com cicatrizes deixadas pela agressividade do tempo. Senti vontade de o confrontar com a realidade mas não tive coragem de o fazer. Deixá-lo acreditar na sua fantasia se isso o faz feliz! Fiz-me personagem do seu mundo. Mostrei interesse, dei sugestões interpretativas que ele acolheu com alegria e gratidão.
Voltei à aldeia com a visão daquele quarto cheio de pedras a obcecar-me. Sentia-me triste, deprimido e com uma forte dor de cabeça. Tomei uma aspirina e atirei-me para cima da cama.
Estou novamente na aldeia, depois de dois anos de ausência. Será, sem dúvida, a última visita, nem sequer cá passarei a noite. Os passos levam-me às ruínas romanas. Tudo está mais votado ao abandono. Novas oliveiras crescem e o olival expande-se sobre a zona arqueológica. Haverá mais azeite, mais luz. Escolho uma pedra do chão. Uma daquelas parecidas com as da colecção que o Velho tinha em casa. Pego nela e vou de automóvel à vila.
Entro no cemitério. O coveiro indica-me a sepultura. É uma campa rasa, sem flores. Nem uma pétala ressequida. É esta a campa de eleição que lhe coube. Deposito sobre a sepultura a pedra. A pedra que dará a ler os sinais da sua vida a quem os souber decifrar. Uma pedra pode dizer a vida inteira de um homem.
Continuará vivo na minha memória. Talvez dê uma personagem. Dará, de certeza. Terá a sua eternidade e glória num dos meus próximos contos.
Despeço-me. Até breve. Voltaremos a encontrar-nos. Não de homem para homem. De escritor para personagem.

1º Prémio nos 4ºs Jogos Florais do Grupo de Amigos de Torres Vedras (2000)


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