João Milfontes

Feliz com o trabalho realizado, mais polido do que o sarro que os olhos sábios das gentes da aldeia viam no corpo, João Milfontes apontou a unha para o céu para melhor observar a escultura digital que nascera do seu velho canivete. Uma gota de água caiu nesse preciso momento em cima da ponta do dedo, humedecendo o espaço intersticial que une a unha à carne. Lambeu a unha com a língua e sentiu-se hesitante na escolha de um de dois raciocínios que a surpresa da gota de água provocara no seu intelecto. Sendo tolo, teria de acreditar que o seu gesto de erguer o dedo para as alturas fora uma ofensa a Deus, magoando-o, e daí a lágrima sobre o seu dedo; ou então, continuando a ser tolo, que tinha assistido a um milagre, a uma resposta do divino face às insistentes preces dos sábios aldeãos. Assim cogitando, preparava-se ele para dedicar a sua paciência escultural a outro dedo, quando uma pancada de água caiu sobre ele, colhendo-o desprevenido. Chuva abençoada que saciava Vale do Pó de uma sede que a todos atacava há anos largos!
Foi então que uma granada de piolhos sorridentes lhe apareceu na boca. A granada foi crescendo até rebentar numa gargalhada viperina que ressoou por montes e vales, trespassando a chuva cerrada. Da cratera aberta no seu rosto, dois dentes podres semelhavam duas frágeis estalactites. E o riso que o fazia rebolar por cima das urzes molhadas era o seu linguarejar selecto, o recurso expressivo com que ilustrava as ideias brilhantes que de si nasciam tão naturalmente como a água das antigas e saudosas fontes. Por ser tão abundante de ideias, por ter resposta pronta para tudo, por ter inventiva suficiente para fazer jus à sua fama de verdadeiro desenrasca português, aceitou com orgulho a alcunha de Milfontes. Nunca chegou a perceber a carga polissémica do termo milfontes (ignora-se se o povo percebeu), mas a palavra havia poisado, naquele inolvidável dia celebérrimo, como um beijo nos seus ouvidos, e desde então fez da palavra dos outros o seu apelido.
João Milfontes rebentava de riso por ter descoberto o negócio da sua vida.
Com uma força motora que lhe era estranha, apressou-se a ir falar com o padre para o convencer da sua ideia genial. Tinha mesmo de o persuadir, e para isto já escolhia mentalmente as melhores palavras, fazer-lhe ver que a sua proposta, a ser realizada, muitos benefícios traria à paróquia. Com o seu projecto, e só precisava do apoio do padre e de 50% das mais-valias obtidas, Vale do Pó poderia transformar-se numa terra rica e próspera, e afirmar-se como um lugar de peregrinação obrigatória, num Novo Mundo da Fé.
A chuva continuava a jorrar como uma graça de Deus. E Milfontes corria para o largo da aldeia, onde o padre se juntara aos políticos e ao povo, já imaginando os milhares de milhões de garrafas de água daquela chuva (com certeza que a água seria sempre daquela chuva para quem a comprasse) que seriam vendidos como a água milagrosa que salvou a aldeia da seca.
Aqua Sancta, murmurou ele, recuperando um saber latino que a sujidade do seu corpo tornava invisível. Há-de chamar-se Aqua Sancta.
Algo cansado de representar o papel de tonto, cansado da máscara de vadio tolo, estratégia adoptada quando em anos anteriores decidiu viver filosoficamente à margem da sociedade, sentia agora o apelo, um bichinho a roer dentro de si, de ser igual ao comum dos mortais, de ser como todos eram na aldeia. Na verdade, já não o estimulava intelectualmente fazer-se de tonto para poder gozar a tontice colectiva e, sobretudo, fugir a essa tontice. Por isso, via agora a oportunidade, através do negócio da sua Aqua Sancta, de se passar para o lado dos que, sendo sensatos por fora, são tontos por dentro. Ora, vingando o negócio, também a sua imagem de homo sanus ganharia credibilidade, primeiro passo para vir a ser o rei dos tolos que sobre a terra se julgam espertos.
Com estes pensamentos, entrou no largo da aldeia no momento em que o padre, os políticos e a multidão faziam uma pausa nas rezas e nas manifestações fervorosas de fé. Chegou-se ao padre, que fingira não ver a sua aproximação, pôs-lhe uma mão sobre o ombro, segredando-lhe ao ouvido que tinha coisas importantíssimas e urgentes a dizer-lhe.
Agora não, Milfontes, sacudiu-se o pároco. Agora não tenho tempo para tontices.
Uma cobra de raiva atravessou-o, quase o levando a despoletar uma granada de piolhos na boca do padre. Mas saiu dali, cabisbaixo, murmurando a lição que aprendera: ao tonto só lhe é permitido ser tonto.
E agora?, interregou-se. Entre a acção e a inércia, entre a intervenção e a indiferença, o que deveria escolher? Seguindo o instinto mais primário, mais ancestral, obedeceria ao sentimento de vingança que o motivava para encetar uma estratégia de destruição do padre E começou a imaginar a delícia de poder manipular como marionetas toda a gente, sobretudo transformar o padre e os políticos em animais de estimação. Por outro lado, se acaso o espírito messiânico vencesse esta dualidade, agiria como um D. Sebastião apolíneo, regressado para salvar os indigentes humanos das trevas. Para isso, lembrava-se agora, poderia talvez contar com a preciosa colaboração do piolho-de-cobra, eremita mais pseudotonto do que ele, e especialista em tudo o que diga respeito à hidromancia.
E agora?, concluiu, qual escolho? E para que mais tarde a sua consciência o não acusasse de nada, subtil fuga à responsabilidade da escolha, pegou num seixo de duas faces, marcou uma e atirou-o às nuvens, para que fossem os Fados a decidir, conforme a posição em que caísse na terra. Ora, quando o seixo furava como uma seta o ar, eis que, para espanto dele, uma cobra voadora foi apanhada pelo projéctil. Caiu mesmo junto a seus pés, e ele estremeceu quando reconheceu no bicho a cara chapada do padre. Ainda não refeito da surpresa, uma nuvem de cobras foi espalhando uma sombra móvel sobre a aldeia. Olhou o céu e percebeu que se dirigiam para o largo da aldeia.
E agora?
Milfontes, levanta-te e caminha!, ouviu ele uma cobra verde dizer lá do alto do céu. Olha-te, Milfontes, com esses olhos que tens na cara, e diz-te o que vês em ti. Olha como tens a pele limpa e respeitável. Tu eras o tonto do pó! Uma coisa é decidirmos ser e viver, vestirmo-nos de andrajos, gozarmos a tontice colectiva sem lhe pertencer, outra coisa é sermos a negação de nós próprios. Deixa de viver a tua mentira, João Milfontes! E agora vou-me embora com o meu bando, que esta água abençoada que cai do céu já me esfria o corpo.
João Milfontes oscilou entre a surpresa de tão estranha aparição de uma cobra falante e o incómodo de ela lhe ter atirado à cara que a sua verdade era uma grande mentira. Mas como a mentira é mais forte do que a verdade, ou porque o hábito faz o monge, neste caso, decidiu-se a ir à gruta do eremita piolho-de-cobra, com a esperança dele receber o conselho que o tornaria sabiamente o rei dos tolos da aldeia, graças à comercialização da sua Aqua Sancta.
Chiça, é difícil a vida de eremita hoje em dia, desabafou mal viu Milfontes entrar na gruta. Estava eu tão descansado aqui na toca a ler o Cama Chuta para solitários, quando a vista dá de ficar baça e as orelhas a ferver. Ainda bem que são curtas, e eu logo desconfiei que era o chato do Milfontes com os seus problemas existenciais. Chiça, antes de tu apareceres, na altura em que mudava de posição poisa-me uma cobra voadora em cima, desnorteada de todo, perdida de cansaço e de encanto, e disse-me que ia morrer mas só depois de dizer tudo, como nos filmes, e por isso ainda ia pensar se havia de não dizer ou morrer, mas o melhor era eu ligar-me à banda larga para não perder muito tempo, repetia a cobra sem sair de cima de mim. Então, farto de a ouvir, porque queria avançar no Cama Chuta, pedi-lhe para ir morrer bem longe para não deixar cheiro. Mas, porém, contudo, todavia, há dias e noites em que um eremita não tem descanso. E vai então logo me chega ao nariz um perfume de lírios do campo, e vi logo que eras tu, tudo por causa de teres escavado o sujo entre as unhas. E agora, se olhares para o sítio que escavaste no dedo, verás brotar de lá toda a tua beleza interior. E essa é a tua grande verdade, Milfontes, é seres um lindo lírico, desculpa, quis dizer lírio. Mas como estou farto do cheiro a lírios, é coisa que não falta aqui onde moro, dei de ficar agoniado e fui logo cheirar hortelã-pimenta. Se de ti tivessem saído amores-perfeitos ia logo num pé ao teu encontro porque nunca vi um em lado nenhum e muito menos nestes meus cem anos de solidão. Portanto, eu vou mas é lá abaixo à aldeia acabar com esta história sem pés nem cabeça. Por conseguinte, embrulho-vos a todos num pano cru, Milfontes, padre, políticos e povo, e ainda mais o atrevido escritor que a todos nos inventou. Enterro-os a todos bem fundo, debaixo da lama, e regressa tudo ao ponto de partida, antes que saia daqui um romance que dê em besta célere, e depois temos aqui um escritor a facturar milhões com histórias de tolos e mentiras.


Menção honrosa nos V Jogos Florais de Avis, 2007

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