CRÓNICA (11)


A L B A



Não sabia que existias. Nunca tinha ouvido falar de ti. Mas hoje, ao ler a notícia da tua morte, com uma síntese biográfica que me despertou o interesse, fiquei com a certeza de pertencer ao pequeno grupo de pessoas que te conheciam. E conheço-te na medida em que conhecer é também compreender. A Ideia, para mim, é a memória de uma pessoa. Quando penso numa pessoa, depressa os traços fisionómicos se apagam sob a força da sua Ideia. Ora, a Ideia que te animava era demasiado obscura para a maioria dos cidadãos. Por isso, poucos te conheciam porque poucos te compreendiam.

Sei que rasgaste a vida em duas metades como quem divide uma folha de papel. Uma parte, sem utilidade, deitaste fora, para o caixote do esquecimento; a outra ficou-te na mão, e nela ousaste escrever uma nova vida. E tu foste a coragem!

A tua coragem, arrancada ao teu inferno interior, surpreendeu, agrediu e dilacerou. É doloroso, para aqueles que participam na comunhão da vida, ficarem de repente privados de um ente querido. Mas a tua determinação era irreversível. Com um golpe cerce, disseste NÃO à sociedade e à náusea que a infesta. Disseste NÃO ao emprego. NÃO aos amigos. NÃO aos familiares maternos e paternos. NÃO à mulher. NÃO aos filhos. NÃO ao teu nome. Disseste NÃO a tudo para poderes ganhar tudo em nada. Para ressuscitar é preciso morrer. E tu foste a coragem transgressora!

Despido da identidade que te incomodava, foste ao encontro de ti. Na tua cidade permaneceste porque era indiferente outra qualquer. Em todos os teus passos havia espaço e tempo, dia e noite, sol e chuva, gente e animais. Um nada que era tudo porque tudo estava dentro de ti. E tu foste a coragem redentora!

Deambulando pelas ruas, sem destino, sem tecto, sujo e maltrapilho, à mercê do sustento possível, habituaste os olhos cegos dos transeuntes a ver o vagabundo-doido que já fora gente normal antes de ser o que é. Insensível e superior ao desprezo e ao riso, ias construindo a tua própria cidade. E nessa tua coragem tu eras alba em perpétuo movimento!

Eras uma cidade feita de alba, uma cidade que só os teus poucos amigos conheciam. Amigos poetas __ condição necessária para alcançar o entendimento das coisas tidas por anormais. Eras, portanto, poeta! Tratavas a vida por tu, rias-te dela, desprezava-la; e, no entanto, ocupavas o teu ócio de parasita social buscando no âmago da vida, bem fundo nas suas entranhas fedorentas, o oiro inebriante das manhãs. E tu eras a coragem feliz!

De poeta publicado, pelo gesto amigo de outros poetas, chegaste a poeta premiado. Encheram-te os bolsos de dinheiro e logo os despejaste em benefício dos teus filhos. Acaso o Júri do Prémio, esquecido de que a tua mendicidade buscava algo muito mais valioso, entendeu o teu conceito de poesia? Tu, com a tua coragem marginal, há muito que fazias da vida poesia!

A poesia não é de todos nem para todos. A poesia incomoda. A tua muito mais __ ela está sobretudo no teu atrevimento, na bofetada que soubeste dar na cara da vida. E esta sentiu-se incomodada, ofendida com a coragem poética que irradiava de um andrajoso vagabundo. Não admira, pois, que, num acto de cobardia, te tenha presenteado com a morte por atropelamento. Afinal, a vida gosta de coisas prosaicas.

Tu não morreste, amigo! Enquanto houver coragem, haverá sempre uma alba...



Jornal da Mealhada, 379, 07.11.2001

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